O Santo estava só na cama. Tudo estava claro, mas ele sabia que em breve a escuridão iria tornar-se suprema e a vida deixaria de fazer sentido, pois ele deixaria de existir. Todos estavam orando na sala contígua ao quarto do Santo. Naquele momento, ele estava só. Chorava. Foi a primeira vez que tivera chance de chorar. Não queria que as pessoas que acreditavam nele o vissem daquele jeito, fraco diante do mistério, mistério que para ele muita vez parecera apenas mais uma porta aberta. Mas na sua hora as lágrimas jorraram, pois tinha medo. Sentiu a aproximação de alguém, enxugou as lágrimas rapidamente escondendo sua cabeça no lençol. Ao escutar a estranha voz feminina, ele deixou-se ver, ainda com olhos vermelhos.
— Não precisa mais chorar. Disse ela sorrindo com a voz terna.
Ela caminhou para mais perto e sentou-se numa cadeira ao lado da cama do Santo. Era uma menina ou mulher que aparentava ter cerca de vinte anos, tinha a pele muito alva, sobretudo a tez. Seus olhos eram negros, assim como os longos cabelos. Trajava uma calça jeans e uma camiseta azul com um nome rubro: Forever. Era muito bela a menina.
O Santo foi logo lhe dizendo que não estava chorando, perguntou-lhe quem era e como havia entrado ali. Sentiu que já a conhecia, aquele sorriso lhe era muito familiar. Ela parecia adivinhar-lhe os pensamentos e naquele exato momento assentiu com a cabeça sorrindo mais ainda como se concordasse com suas reflexões.
— Quem é você, criança?
— Ora, o senhor sabe muito bem quem sou. Já me viu várias vezes, falou de mim por tanto tempo que já me considero sua parenta.
— Sinto muito criança, mas jamais te vi. O que queres?
— Que decepção, tinha certeza que o senhor me reconheceria, mas... É a vida né? Dê-me a mão e vamos...
— Vamos? Para onde? Estais maluca criança, daqui não vou a lugar nenhum mesmo se quisesse. Não vês que meu corpo definha, que minhas carnes apodrecem mesmo quando ainda estou vivo, que jamais sairei desta cama com vida? Vieste zombar de mim? Queres que eu vá? Para onde? Disse o Santo quase conseguindo sorrir da proposta da menina.
— De onde vou te levar eu bem sei, mas para onde vais, até para mim é um mistério.
— Se esta é uma brincadeira, ela nasceu sem graça, quem és?
— Uma pergunta fácil, mas de tão difícil resposta. Não sei por que, me dão tantos nomes, mas podes me chamar de Letha. Vim levá-lo, mas, antes, quero conversar consigo.
A face do Santo se transmudou, ficou pálido. Ficou a refletir quem seria o autor de tão pérfida peça. Os pensamentos dele foram interrompidos pela voz da menina que disse:
— Não há perfidez em meus atos e não se trata de uma brincadeira. Diga-se de passagem, levo meu trabalho a sério, raramente falho, mas nem tudo depende de mim. Como eu sei o que você está pensando? Não, não sou nenhum demônio, na verdade nem sei se eles existem. Eu por exemplo nunca vi um. Olha, se o senhor se sentir melhor, pode falar, mas se não quiser pode só pensar mesmo, eu entenderei.
— Então é você mesma? Meu Deus! Como você é diferente. Eu queria fazer algumas perguntas á senhora...
— Por favor, senhor, nada de formalidades, não quero sentir-me velha. Podes me tratar por tu.
— Sangue de Cristo! A senho... Quer dizer... Você poderia deixar para depois? Deixar-me mais um tempinho aqui? Disse o Santo entre lágrimas.
— Mas meu senhor, por essa eu realmente não esperava. Mas não é o senhor que viveu sem pecado, foi bom filho, bom irmão, dedicou toda sua vida à caridade e ao perdão, realizou prodígios vários, como curar doentes, fez chover, multiplicou o pão assim como a nazareno. Não foi o senhor que sempre pregou a vitória sobre a morte e a vida eterna? Não foi o senhor que afirmava conversar com os mortos? E que já consolou tantos da dor da perda?
— Foi sim. Disse o Santo com a voz sumida entres soluços.
— E como agora fica desesperado? Chora como um descrente diante de mim? Como agora vem me implorar para que não o leve? Onde está sua fé agora?
— É que... O Santo não cessava de soluçar. É que... O Santo cerrava os punhos, deitado na cama, ansiava por ter forças para se ajoelhar. Eu, agora diante do fim, não tenho mais certeza de nada. Será que realmente fiz o que fiz? Será que realmente falei com os mortos? Até onde vai a realidade e o que apenas quis ver? As curas eram poder divino ou apenas a força de meus pensamentos? Passei a minha vida inteira crendo que sabia das coisas, que essa hora para mim seria serena, mas agora, diante disso tudo, tenho medo que tenha vivido numa lusão, que tudo que eu fiz tenha sido obra de minha mente que buscava acreditar na minha própria mentira.
A menina parecia confusa com as palavras do Santo e repensava que realmente por esta ela não esperava, o Santo continuava.
— Mas você pode me ajudar, você deve saber o que há do outro lado do mistério, por favor, pelo amor de Deus (se é que ele existe, pensou baixinho) dê-me um consolo, faça-me caminhar de peito aberto para Jesus. Diga-me: como Deus criou as coisas, por que há o mal, por que todos morrem, por que tanta dor?
Se isso é possível, ao escutar tal pergunta vinda do Santo, Letha ficou pálida de espanto e foi respondendo, mas as palavras saíam agora com dificuldade.
— Sinto lhe informar, mas não sei de nada, creio que sei menos que você.
— Mas isso é um absurdo, só através de você é possível se saber alguma coisa... Isso é uma loucura. Rosnou o Santo já em desespero.
— Absurdo? Você vem me falar em absurdo? Essa é boa! Eu venho aqui procurar um Santo e o que vejo? Um velho com medo de morrer... Não, meu caro, eu não sei de nada. Ignoro por que o mal existe e nem sei o que é o mal, nem tão pouco tenho noção do que venha ser o bem. Vocês humanos e, sobretudo, os senhores Santos é que deveriam saber distinguir bem o que são essas coisas e o porquê delas. A dor? Eu não sei o que é dor nem prazer. Talvez um não exista sem o outro... eu? Ah nem sei por que existo, só sei que há muito tempo, não sei o quanto, faço meu trabalho e sou temida por todos os seres vivos. Fazem uma péssima imagem de mim. Mas que culpa tenho? Não entendo por que existo nem sei se algo me criou, só sei que faço o meu trabalho e não consigo parar de fazê-lo. Estou em toda parte, nunca cesso, nem um segundo de descanso e ninguém tem dó de mim, mas tão somente terror ou ódio. Eu não sei de nada, só sei que existo e minha função é essa e dela não posso fugir, tenho apenas que conviver nesta solidão, nesta angústia eterna de nada saber, invejando vocês que têm a chance de partir enquanto eu estou condenada a trabalhar para todo sempre.
— Mas... E os milagres, e Jesus, você não conseguiu pegá-lo... Ele te venceu.
— Olha, para falar a verdade minha memória é péssima. Pense em quantos seres eu já vi e conheci. Mas é claro que deste em específico eu não posso me esquecer. Não me lembro bem o tempo. Só sei que na hora em que fui visitá-lo ele estava implorando pra que eu não o levasse, clamou para que fosse afastado dele o cálice do fim. Contudo, mesmo deixando-o por mais algum tempo, era inevitável chamá-lo, ele tinha ciência disso. E sabe o que ele fez na hora derradeira? Implorou novamente, estava na cruz e chorava copiosamente, dizendo que tinha medo, que o pai dele o havia abandonado. Sabe o que é pior? Eu também havia acreditado nele, pensei que ele era o filho de algum Deus, pensei que na hora em que fosse buscá-lo finalmente estaria alguém me sorrindo de braços abertos, pois ao menos este sabia que retornaria... Mas qual nada! Se ele retornou? Não sei, mas devo lhe adiantar que até hoje não houve ninguém que voltou. Ninguém mesmo, pelo menos que eu saiba. O Gautama, que vocês chamam Buda, quando me viu abraçou-me chorando convulsivamente, poderia ser medo, alívio, felicidade, jamais saberei por que ele nada disse nem pensou. Maomé, muito altivo, pediu-me gentilmente para levá-lo ao outro lado, mas eu não sei como ir para lá, tantos outros, mas... Nada. Nunca consigo lembrar onde os deixo. Gostaria muito de saber para onde vocês vão. Se é que existe algum lugar. Eu sei que você é uma pessoa especial, são poucos igual a você. Em todos eles busquei a resposta para minhas perguntas, mas nunca tive resposta.
— Mentira, você é uma mentirosa, você é uma demônio travestido. Veio aqui para enfraquecer a minha fé. Não, há sim outro lado, há luz, eu sei que há, tem que haver senão nada teria sentido...
— Já imaginou se a natureza quer que alguma coisa faça sentido? Já imaginou que talvez ela não se importe e que não temos a quem recorrer?
— Não acredito em ti. Vem, vem que agora não tenho medo. Vem... Completou o Santo entre lágrimas que agora eram abundantes.
Letha sorriu compassiva e estendeu a mão para o Santo dizendo:
— Você é um bem aventurado, sua fé é tão grande quanto o nosso senhor imaginava, esta foi á última provação da tua crença. Jamais vi fé tão grande e tão pura. Vem comigo que o senhor teu Deus te espera de braços abertos...
E sorrindo, o Santo morreu.
Letha permaneceu no quarto por algum tempo. Se ela tivesse lágrimas estaria chorando. Mais uma vez ela teria que ir, seguindo sem sentido, mas uma vez, ela iria sem resposta. Como todos os seres, ela não sabia para onde iria. Mas neste dia ela soube ao menos o significado da palavra: Piedade.
Adriano Cabral