- O que você tem pra falar comigo?
- Poderíamos ir para um lugar mais...Privado?
- Eu não me lembro de ter absolutamente nada para falar contigo que exija privacidade. Ao dizer isso ela deu uma risada estrondosa que foi acompanhada por um pequeno grupo que a rodeava. Fiquei paralisado por alguns instantes, vergonha, medo, angústia, desespero, pegue tudo isso e ponha no liquidificador da impotência e então talvez você tenha uma vaga idéia do que estava sentindo.
- Você acha justo me tratar assim na frente de todo mundo? Indaguei com a voz trêmula, fraca que saiu da minha boca mais como um apelo do que uma pergunta. Ao ouvir-me ela voltou-se para mim com brasas nos olhos, mas a voz que saía dela era cruelmente plácida:
- Eu não tenho absolutamente nada para tratar com você. Pare de me fazer passar por ridícula diante de meus amigos. Pare de me perseguir, pare de me ligar, pare de ir á minha casa, enfim tenha o mínimo de vergonha na cara, dignidade e desapareça. Se existe alguma coisa dentro de você que ainda goste, não me dirija à palavra seu maluco.
Estas últimas palavras soaram para mim como uma sentença de morte, senti todos os meus membros se debilitarem, faltou-me ar, meus olhos ardiam e um líquido começou a brotar deles, as minhas cordas vocais não tiveram forças para dizer mais nada, apenas vi a pequena figura ir embora sorrindo com seu séqüito. Como é possível que as palavras possam ter um efeito tão esmagador sobre uma pessoa.
Parece que foi ontem, mas já se passaram meses quando eu e Helena estávamos numa festa. Ela praticamente foi “forçada” a ir diante dos meus insistentes convites. Adorava-a como amiga. Era evangélica, de uma dessas denominações que considera a maioria das coisas é pecado. A mãe morrera há alguns meses, residia com uma das irmãs, éramos vizinhos e seu pai morava em outro bairro distante. Naquela noite ficamos juntos o tempo todo, só nós. Ela tentou me beijar, eu recusei, porque? Contaminado pelo romantismo alencariano[1] só queria beijar a mulher da minha vida, nada mais, nada menos. Portanto, antes do primeiro beijo eu tinha que ter certeza que ela seria o amor de minha vida. Apenas nos abraçamos. Pela manhã acordei ouvindo pássaros, o dia estava mais bonito, senti-me abençoado pelo amor. À tarde fui a casa dela, queria beijá-la, no entanto ela partira para residência paterna deixando bem claro para irmã que não queria ser encontrada.
Helena voltou muitos meses depois enquanto eu alternava entre o desespero e euforia, sentindo-a hora longe hora bem distante apenas aguardando o reencontro. Mas a minha doce Helena não retornara, e sim uma mulher fria, dura, ácida, insolente e não raro mal educada.
Todas as minhas tentativas de aproximação foram vãs, ou eram ignoradas ou rechaçadas de forma dura. Todos no bairro já sabiam do rapaz “boboca” que era rejeitado pela irmã da assembléia de Deus. A minha mãe detestava Helena mesmo sem a conhecer, que mãe vai gostar de alguém que faz seu filho sofrer?
Chovia torrencialmente e eu acabara de bater bola com os amigos, estava enlameado da cabeça aos pés, mesmo com a dificuldade de enxergar por causa do dilúvio consegui ver na janela do primeira andar a figura de Helena que estava parada como presa a uma moldura. Não resisti e entrei em seu jardim oculto pela vegetação. Ela naquele momento lembrava a minha Helena, olhar plácido, doce e ousaria dizer que seus pensamentos estavam em mim. Enleado por esse momento comecei a declamar em voz alta o poema Via Láctea[2], ao ouvir minha voz seus olhos encontraram os meus e da sua boca soprou um sorriso, nele fui tragado para dentro dela e ela para dentro de mim e enquanto a chuva castigava a terra o céu era como um pálio aberto onde só se via estrelas ofuscadas por dois astros que cintilavam mais do que qualquer nova, nutridos pelo infinito poder do amor.
Mas o que te interessa é saber que estamos de volta ao momento em que fui morto pela até então minha adorada e amada Helena. Fiquei horas lá, parado, não sei se de pé ou sentado tentando encontrar o que restara de minha alma, e porque não, dignidade. Quando me ergui vi ao longe a maldita sentada no banco da praça sozinha, olhos baixos. Aproximei-me dela velozmente, queria também ferí-la tentaria dizer algo odioso, queria vê-la chorar, queria sentir ela sofrer tanto quanto eu, queria matá-la de dentro de mim, deveria odiá-la. Quando cheguei bem perto e gritei seu nome ela fuzilou-me e mais uma vez fui paralisado. Não, não foi ódio nem de desdém que encontrei naquele instante, e sim amor e dor. Numa ebulição de euforia, medo, dor, alegria e dúvida fiquei indagando repetidamente se ela me amava. Ela desviava o olhar sem cessar, cada pergunta parecia violá-la de alguma forma, parecia desnudá-la a força, ela tentava fugir do meu olhar e acabou efetivamente fugindo para o meu desespero. Mais tarde procurei amigos para me consolar, destacava todas as tintas ruins daquele “relacionamento” e eles obviamente faziam coro para eu deixá-la de lado. À noite, só no meu quarto, não pude conter as lágrimas. Minha mãe ouviu meu lamento, entrou no quarto e abraçou-me. Eu também a utilizei como suporte para me livrar daquele amor que doía tanto. Era mais fácil fazer com que os outros a odiassem e repetissem pra mim que ela não me merecia, afinal, quem realmente vai entender o que se passa entre um casal apaixonado a não ser eles mesmos? A campainha gritou, minha mãe foi atender, fiquei no quarto. Ela retornou gaguejando, dizendo que não era ninguém, insisti em saber, ela a contragosto disse que era a menina maluca que fazia seu filho sofrer, mostrou-me uma carta que acabara de ser entregue pela maluca estava assinada: Helena Souza. Na carta estava o poema.
Só tive notícias dela cinco anos depois. Alguém começou a ligar-me sem se identificar e dizia querer apenas ter o prazer de ouvir a minha voz. Com o tempo ela se revelou e disse que estava casada há quatro anos, contudo, jamais deixara de pensar em mim. Tentei entender o porque dela ter fugido e ela resumiu: Nunca acreditei que alguém pudesse me amar tanto e que eu merecesse ser tão feliz, por isso tive medo e fugi, claro que não era isso que dizia pra mim mesma na época, só tentava ver defeitos ou me apegar a mágoa de ter sido "rejeitada" por ti no início.
Creio que deve ser muito triste passar uma vida inteira sem jamais ter encontrado um grande amor, mas tenho certeza que deve ser muito mais cruel encontrar e simplesmente deixá-lo ir, seja por insegurança, seja por pânico apegando-se desesperadamente as mágoas e nela encontrando forças para sufocar os bons sentimentos, sejá lá pelo motivo que for.
Ela deveria ter entendido as estrelas, deveria ter compreendido que no final das contas, alguns encontros são tão raros e valiosos que pouca coisa deveria ser capaz de causar o desencontro, e que, ficarmos efetivamente juntos era a única coisa que realmente importava. A única.
Desliguei o telefone e ficamos em silêncio.
[1] Referência ao escritor cearense José de Alencar, uma da figuras máximas do romantismo brasileiro.
[2] Poema de Olavo Bilac, fala de alguém que todas as noites se comunica com as estrelas por sentir e entender o amor. Nota-se que o poema “segredos de um ser robotizado” é inspirado no do poeta parnasiano.
Sério, ninguém merece conhecer uma louca dessa e ainda mais se apaixonar tanto assim!. Esse negócio de lutar contra si mesmo, contra o próprio sentimento que liga tão forte alguém a outro isso é coisa de maluca. Sinceramente ninguém merece mesmo. Espero que essa história não tenha sido real.
ResponderExcluirSofrimento em regra não é algo que a gente tem porque merece. Acontece com todo mundo sempre, a grande questão é: é melhor sofrer por algo importante ou sofrer por quase nada ou nada? Eis a grande questão. Não há como evitar o sofrimento o máximo que se pode é quando a dor e o sofrimento vier que ele não venha pelo acaso, pelas coisas casuais, pela futilidade mas por algo que realmente tenha valido a pena. Muitas vezes não é o que fazemos que nos define, mas PORQUE fazemos.
ResponderExcluirUm texto realmente emocionante, triste, mas mostra uma realidade que creio ser vivida pela maioria dos verdadeiros amantes.
ResponderExcluirMesmo sofrendo acho que não tem nada melhor do que viver, e procurar viver sempre tudo ao máximo possível. Assim como disse Vinícius de Moraes “que seja infinito enquanto dure”, tudo aqui na terra é passageiro, então vale a pena aproveitar tudo e fazer realmente infinito ou eterno enquanto dure. A própria Bíblia fala sobre o amor ser sofredor, e aqueles que amam precisam também aprender a sofrer, mas ao mesmo tempo que é sofredor, é benigno, e acho que as melhores coisas que vivemos em nossas vidas estão relacionadas a algo ou alguém que amamos. Então ainda que se passe por maus momentos, amar ainda vale a pena. E conforme está escrito no texto muito mais triste do que passar a vida inteira sem amar é deixar escapar um amor verdadeiro.
Você sabe que muitos dos seus textos me tocam a alma como só Vinícius sabe fazer e que se as vezes me ponho complicada ante qualquer tentativa de entendimento, não é propositalmente. Hoje, o seu texto conseguiu despertar em mim a vontade de me exteriorizar com a mesma fidelidade com a qual você faz e faz tão bem. Espero um dia atingir o mesmo nível de excelência em que você esta hoje. Com carinho, Jé.
ResponderExcluirJéssica, com certeza suas palavras foram mais fruto do seu carinho por mim do que pela qualidade do escritor. Mesmo assim, grato pela gentileza.
ResponderExcluirAcho que você tocou bem numa coisa, o que falta não só pra ti, como para muita gente, é ter a capacidade para exteriorizar a riqueza de sentimentos que temos dentro de nós. Isso não te falta, logo, essa "excelência" já está dentro de ti, só falta você usá-la.
O texto é bom, mas é difícil mesmo de aceitar que alguém se apegue tanto as coisas ruins e não se permita a acreditar no amor. Quando há amor mesmo tudo se supera. Problemas, defeitos, crises, teremos em qualquer relação, mas uma relação com amor ...aí é mais embaixo.
ResponderExcluirLindo texto Dri! você é uma mor.
É. Palavras têm poder... podem destruir ou elevar reinos. Marcelo
ResponderExcluirPalavra têm poder! Podem ser setas afiadas a destruir corações.
ResponderExcluirthe last little girl on earth.
ResponderExcluir"Sofrimento em regra não é algo que a gente tem porque merece. Acontece com todo mundo sempre, a grande questão é: é melhor sofrer por algo importante ou sofrer por quase nada ou nada"... mas como saber? em situações práticas é facil, vc perde dez centavos, não liga, perde cinquenta mil reais, ai vc fica desesperado, especialmente se era o dinheiro da da compra da sua casa... mas em relação a sentimentos tudo que eu sinto é importante, como posso dizer : ah sim esse sentimento vale dez centavos, esse outro vale cinquenta mil reais?, sentimentos são imensuráveis, e muitas vezes para mim indecifráveis, não é deficil para mim perceber quando alguem é importante, é facil sentir, mas classificar tal sentimento, o que é como é, eu me perco nas palavras...mas uma vez alguem me disse que classificações pouco importam... a gente sente o que é importante, mas será que sentir é suficiente para saber?