Dr. Gustavo acordou sobressaltado com o barulho de alguém batendo na porta. Era a enfermeira comunicando a chegada de mais um paciente, olhou o relógio, eram duas da manhã. No meio tempo em que recobrou a consciência até chegar á maca, já topou com o paciente morto. O corpo era de um homem com cerca de vinte e cinco anos, estava de bermuda surrada, camiseta e sandálias havaianas. Não portava nenhum documento, fora vítima de atropelamento.
- Deve ter sido algum pinguço que não soube atravessar a rua, falou com desdém o doutor para enfermeira, esta, começou subitamente a chorar. Ta maluca mulher, agora vamos chorar pelos cachaceiros que morrem no plantão? Dito isto, a enfermeira estendeu-lhe um saco plástico, e disse entre soluços que era do defunto. Estupefato com a atitude da colega, Gustavo olhou o conteúdo do pacote: fraldas descartáveis.
Diante daquilo, o doutor tornou-se sério, deu a volta e caminhou em silêncio para o repouso. Talvez se ainda houve lágrimas naquelas pálpebras tão fatigadas de chagas e desgraças humanas do dia-a-dia, talvez ele chorasse.
Assim como o personagem que ilustra a introdução deste texto, ontem, não sei bem que horas, Amaro morreu vítima de atropelamento. Ligaram-me três vezes para informarem do óbito ou para dar detalhes do funeral. Ao telefone, cada uma expressava um espanto, um constrangimento e um terror. Eu, como quase todo ser humano normal, não sabia muito bem o que dizer para meus interlocutores muito mais próximos ao homem que até antes de ontem existia.
Mas Amaro não existe mais, nem o chamam mais pelo nome, segundo Mônica, uma das que me ligou e reconheceu o amigo de faculdade, o policial e todos ao redor do defunto chamavam-no agora de "o corpo".
Amaro era um homem grave, voz contida, olhar duro, mas sempre educado desde o trajar, andar e falar. Tinha mais ou menos trinta anos, não sei ao certo. Só sei dessas poucas características e que foi meu aluno, sim, meu aluno. Mas confesso, um pouco constrangido, que geralmente ao ouvir notícias fúnebres as trato com certa indiferença. Coração duro, talvez para se proteger da dor infinita diante do fim. Mas neste caso, a notícia de sua morte automaticamente me pôs no lugar de seus amigos, parentes, amores, filhos e toda sorte de pessoas que ficarão órfãs a partir deste dia, e foi inevitável a emoção tomar conta de minha mente tão fatigada da desgraça e das chagas humanas do dia-a-dia.
A morte foi violenta, provavelmente Amaro será levado ao IML local e seu corpo será examinado. Os amigos trocarão histórias, alguns até sorrirão para disfarçar a dor relembrando momentos divertidos do passado. As lágrimas mais abundantes serão dos parentes. E durante muito tempo ele será relembrado até que, também, todos os seus conhecidos sumirão da face da terra.
É isso, Amaro morreu. Foi arrancado da terra, sem direito a recurso, discurso ou protesto, desapareceu. Agora é só um corpo inerte.
Mas assim como o rapaz, pai de primeira viagem que saiu orgulhoso e apressado no meio da madrugada para comprar fraldas para o filho, Amaro deixou sua marca na terra, e se há realmente um gosto Amargo nos que ficaram, há sim a pungente lembrança de sua doçura que envolveu seus entes queridos.
By Adriano Cabral.
Eu acho que conheço esse Dr. Gustavo.
ResponderExcluirGustavo Rocha.
Que triste..
ResponderExcluirServe para nos lembrar da brevidade da vida. Talvez devessemos aproveitar mais o hoje, sem empurrar coisas para o amanhã.. pois pode ser que ele não chegue. Vamos dizer o que precisamos, rir o quanto pudermos,e chorar o quanto quisermos. Vamos viver intensamente, para que no dia em que a morte vier para nos buscar, possamos com um sorriso no rosto, dizer: E daí? Vivi tudo aquilo que gostaria, e se pudesse voltar no tempo, do mesmo modo, repetiria!
;D
Meus sinceros pêsames..
A morte dói para os mais próximos do falecido. A nós, que sequer conhecemos o x+1 das estatísticas, só nos faz lembrar que nossa hora também é certa e, seja na juventude ou na velhice, será em breve.
ResponderExcluirA morte, como costumo dizer, é um fenômeno violento de qualquer jeito, pois nos arranca daquilo que conhecemos precariamente e nos joga no desconhecido. Mas como você disse, fica algo daqueles que partem naqueles que ficam. Isso que fica é a essência de quem somos, o que ninguém nos pode tirar.
ResponderExcluirAbraços.
Sem comentários, Adriano. Mais um texto reflexivo, envolvente e emocionante. PARABÉNS, professor :)
ResponderExcluirA morte traz sensações das mais variadas, pois arranca uma vida , muitas vezes, no momento que menos esperamos.
Beijoooooooo
Acho que por isso ás vezes pareço realmente não ver nada além da estrada. Afinal, o tempo é agora, a vida é agora. Não temos todo tempo do mundo, só temos no nosso próprio tempo.
ResponderExcluirPor isso viva intensamente, intensamente com quem você ama, fazendo o que gosta ou ao menos lutando por isso, cultivando menos sentimentos negativos e se apegando ao que há de bom.
Porque temos muito pouco para desperdiçarmos as partículas maravilhosas de felicidade que a vida, as vezes, nos brinda.
O descrito é a fiel cópia de uma realidade posta e exposta, a qual muitos não conseguem aceitar...saudades (suportável) do Amigo Amaro
ResponderExcluirA morte é algo que muitos de nós tem dificuldade de aceitar, mas é fato, todos um dia chegaremos a ela. O pior é que não sabemos quando isto acontecerá e corroborando o comentário do autor deve-se viver intensamente, "intensamente com quem você ama, fazendo o que gosta ou ao menos lutando por isso, cultivando menos sentimentos negativos e se apegando ao que há de bom".
ResponderExcluirO importante é aproveitar cada momento do presente como se fosse o último, ao invés de esperar sempre pelo amanhã.