terça-feira, 12 de outubro de 2010

Chuva de Liberdade


      Alberto Rego Brito não era um rapaz bonito. No entanto, se a natureza não lhe brindara com grande beleza, não o condenou à extrema feiúra. Sua aparência era quase invisível. Quando passava ninguém percebia ou lembrava direito de seu rosto. Parecia-se com todo mundo e não se assemelhava a ninguém. É difícil descrevê-lo. Não era alto, também não era baixo; num momento, parecia ser meio gordinho, para logo em seguida, parecer-se magro. Até a adolescência lhe negara uma distinção: não lhe dera espinhas no rosto tirando-lhe a oportunidade de alguém dizer “Alberto, é aquele rapaz cheio de espinhas.” A cor do seus olhos eram...

Sua inaparência era compensada por sua grande cultura acadêmica. Como aluno, era definitivamente o melhor, mas sempre discreto, sem desfrutar dos louros dessa sua qualidade. Tinha, nesses tempos vinte um anos e cursava o quarto ano de medicina na FESP. Era rapaz cortês, sempre falava (quando falava) baixo, vestia-se com o apuro que lhe proporcionava a fortuna materna. Era filho único.
      Um idealista, o Alberto. Antes de tudo, um idealista. Sonhava com um mundo melhor, onde a pobreza fosse lenda. Tratava os criados como gente e da família. Jamais se gabava de sua posição social. Conhecia a miséria através dos livros e através destes criou o firme propósito de transformar o mundo num lugar melhor. Seria médico sanitarista, preveniria e curaria as chagas dos miseráveis. Tinha certeza de que só alguém com cultura poderia mudar o mundo, e este era seu objetivo, a ele quem o destino havia incumbido da difícil tarefa e transformar a realidade.
Toda sua vida, até ali, fora teórica. Vivera até aquele momento, encarcerado no mundo materno. Só conhecia o apartamento, o clube, a escola e depois a faculdade.
Teve uma infância de enfermo. A mãe proibia-o de fazer quase tudo. Não podia brincar com os meninos de sua idade, praticar esportes, ficar sob a chuva, sol ou sereno. Tudo era muito perigoso. Seu mundo era uma janela. Vivia à janela de seu quarto, a olhar a rua sonhando a liberdade.
Sempre residiu no mesmo apartamento espaçoso no bairro de Cajueiro, subúrbio do Recife. Era um condomínio fechado, composto de doze edifícios, cada um com doze andares. Com uma grande área de lazer. Era chamado de conjunto residencial São Francisco de Assis.
Da rótula, ele via as outras crianças que livres, cruzavam aquele mundo que afigurava-se-lhe cheio de fantasias, aventuras e mistérios e que era o cotidiano comum delas. Todavia, tudo para ele parecia um sonho inalcançável. Quanta vez não se imaginou junto a elas, desfrutando do prazer de ser criança?
      Na sua condição de cativo, não conseguia angariar muitos amigos. Além da janela, tinha os livros como companhia. Não perdia tempo em ler romances. História, Geografia, Política e Filosofia eram sua literatura preferida. Durante horas e horas, esquecia a timidez e travava ferozes debates filosóficos e políticos na solidão do seu quarto. Por muitas vezes, sua mãe o levara a psicólogos a fim de descobrir o que fazia seu filho tagarelar horas a fio sozinho.
Quando a solidão e a tristeza se tornavam insuportáveis, firmava os olhos no mármore negro buscando fugir dos pensamentos. Era pedra. Era o mergulho, o delicioso mergulho no nada, no não pensar.
      Da infância até a adolescência, seu leque de amizades era composto de uns poucos rapazes do colégio. Neste, até chegar à faculdade, fato curioso se dava: ninguém ousava sentar ao lado de Alberto, ou melhor, as quatro bancas, a direita e as quatro bancas à sua esquerda, sempre estavam vazias; retifico, quase sempre estavam vazias, visto que, uma vez ou outra, um desavisado sentava-se ao seu lado. Estes infelizes, após passarem algumas semanas sem escutar som algum saindo da boca de Alberto, mudavam de lugar. Alguns poucos, mais tenazes, ficavam meses tentando estabelecer contato, mas o máximo que conseguiam eram raríssimos monossílabos de sua parte (destaque-se que, por muito tempo, acreditou-se, no colégio que Alberto era mudo, mesmo quando os ditos “mais tenazes” afiançavam ter escutado monossílabos dele, quase ninguém cria em tal milagre. Não teriam sido grunhidos? Indagavam todos diante da afirmativa de que Alberto teria emitido algum som vocal.
Na chamada da escola, ao se ouvir “Alberto Rego Brito”, o dono do nome nunca respondia o tradicional “presente”, simplesmente erguia a mão em resposta. Acresce que erguia pouco, só o suficiente para ser visto pelo professor. Até mesmo a Katia Valéria, a garota mais cobiçada do colégio, quase não teve nenhuma chance de falar com o rapaz, não obstante as insistentes tentativas. E sabe-se lá o diabo os motivos que levaram a bela garota a enamorar-se de nosso herói, sabendo-se desde logo, que ela também advinha de família abastada, portanto, não teria interesses pecuniários sobre ele.
O único ser que conseguiu tirar o rapaz do isolamento foi um garoto, bastante extrovertido, baixote e gorducho de nome Adriano, que com um tempo, conseguiu inserir o nosso herói num restrito grupo do colégio, o qual Katia fez parte. Isto ocorreu quase no fim do segundo grau. Sobre Katia e Alberto, nada mais direi, a não ser que, não obstante os esforços da menina, nada mais os envolveu senão o laço da amizade.
      Afora o restritíssimo grupo escolar do qual fez parte já no fim da sua adolescência, houve uns poucos garotos que conhecera nas mais raras ainda escapadas da prisão domiciliar. A primeira dessas escapadas se deu quando Alberto tinha doze anos. Há muito, observava um grupo de garotos que, muita vez, se reunia em frente à janela do seu quarto. Como ele morava no primeiro andar, via e ouvia aqueles meninos brincar e confabular no pátio que ficava a alguns metros de seu prédio. Desse grupo se destacava um menino, de grande estatura para sua idade, de longos cabelos lisos e castanhos, que falava alto e liderava os demais. Quanta vez não vira aquele menino correr pra lá e pra cá, rolar na lama, brigar aos socos com os colegas e outras vezes, apenas sentado só sob a árvore durante longas horas com um livro nas mãos?
      Certo dia de chuva, Alberto se encontrava à janela de seu quarto olhando as águas açoitarem o solo. Chovia forte e o vento gritava aos ouvidos do menino impedindo-o de escutar com clareza os outros sons vindo da rua. Com um tempo, as torrentes foram se abrandando e se transmudaram naqueles pingos miúdos e tão chatos, mas ainda barulhentos. Subitamente ouviu vozes que vinham da rua. Tentou distingui-las e reconheceu uma delas como a de sua vizinha. Sem dúvida, era sua amada Geanina que falava com alguém que estava sob sua janela. Alberto não conseguia compreender o conteúdo do diálogo, mas percebeu que a voz do interlocutor de sua vizinha era de menino. Foi possuído pela ira do ciúme, foi tomado pelo demônio dos olhos verdes. A voz desconhecida cresceu e ganhou musicalidade e ritmo, havia estrelas e amor naquelas palavras. Alberto se desesperou, as vozes cessaram. Seu coração quase que parara naquele instante. Alguns minutos depois ele escutou uma voz em claro e bom som abaixo de sua janela:
— Alberto, aqui idiota, olhe-me.
Era o menino de cabelos longos. Ao chamado tão inusitado nosso jovem recluso só conseguiu resmungar alguma coisa como:Ãh? o outro continuou:
— Oh cativo! Sei bem que tua mãe está a viajar e que estás só, apenas com os teus serviçais. Não queres tu fugir deste calabouço?
— Não, não quero... O dia também não está belo, chove , é... perigoso e..., ainda mais, não te conheço.
— Oh, pequeno rato! Não sabes distinguir a rara beleza das negras nuvens e a pálida virtude de um dia ensolarado? Ainda mais, não sabes nem podes mentir, conhece-me bem. Há anos que te vejo a nos invejar de tua janela. Vim oferecer-te a liberdade, ajudar-te a romper os grilhões materno e te mostrar o mundo, o meu mundo.
— Nem sei o teu nome e você sabe o meu. Não se pode confiar num estranho.
Alberto há muito admirava o pequeno demônio de longos cabelos, estava tentado a contrariar os desígnios da mãe. Aquela linguagem incomum para uma criança encantava o nosso recluso.
— Queres um nome? Tenho dois magníficos, mas basta-me hoje um: Alexandre.
Neste dia, Lorde da Lama facção da seita dos Adoradores da Chuva.
— Adoradores da Chuva?
— Sim, alguns anseiam dormir sob um leito de negras nuvens, ver o sol em agonia e perdendo a luz; outros se deleitam com os doces gemidos do trovão ou o sussurrar da fugidia ventania; há aqueles de gostos bem apurados que só vêem a força dos raios; há os que gozam o barulho dos pingos de chuva a bater no chão; as crianças adoram o arco-íris; outros se contentam apenas ver um belo dia se fazer escuridão; ainda há os loucos das procelas marítimas. Vários gostos diferentes, não em direção divergentes, mas concorrentes, todos, sem exceção, têm uma só religião: são Adoradores da Chuva. Eu sou Alexandre, Lorde da Lama, chefe da magnífica Ordem dos Cavaleiros da Lama e, é claro, adoradores da chuva. Mas amante da lama, lama que moldou nosso corpo, nos deu alma, lama eterna à qual nos juntaremos no final de tudo, e através dela, mais unidos do que nunca, nos curvaremos à chuva, agradecendo este incrível amálgama impossível em vida.
Esse título caía-lhe como uma luva. Além de encharcado pela chuva, suas roupas pareciam ser a mais pura extensão do chão barrento. Alberto hesitava, seu coração estava acelerado, respiração ofegante. Suas dúvidas se dissiparam quando outros meninos surgiram do nada e gritaram em uníssono:

Liberdade ao cativo! Liberdade ao alberto.

   Ele não pensou mais em nada. Voou pelos corredores, abriu a porta, desceu as escadas aos pulos e se juntou aos cavalheiros da lama.Esse dia foi relembrado até em sua morte. Pela primeira vez pôde ser criança. Fez quase tudo que lhe era negado viver. Perdeu completamente a timidez. Isso comprova minha teoria de que no fundo todo ser humano nasce com a vocação de ser criança, e por outro lado, há aqueles que esquecem que têm de crescer um dia. O céu cinza dava aquele aspecto onírico que nos faz pensar que tudo é possível. Envolvido pela voz do Lorde, entregou-se o Alberto a todas as brincadeiras. Correu desvairadamente, riu às gargalhadas como jamais riria novamente, jogou futebol, rodou peão, jogou bola de gude, brincou de pega, garrafão, esconde-esconde e não foi almoçar; comeu qualquer porcaria na rua; brincou de mímica, lutou artes marciais, usou o badoque, caiu, chorou, rolou na lama, sorriu, dançou na chuva e gritou bem alto. No céu surgiu um arco-íris. O Lorde da Lama proclamou que aquele seria o dia universal da liberdade. Era uma sexta-feira, vinte sete de agosto de 19...
       Ao voltar pra casa adoeceu, teve febre e foi parar no hospital. Sua mãe soube da aventura. Não ralhou com ele, apenas fuzilou-o com um longo olhar que o fez gelar. Mesmo assim quando esteve só, sorriu.

(Trecho adaptado do romance "Cavaleiro da Ordem Da Lama" de Adriano Cabral).

9 comentários:

  1. Uma bela historia, o que nos faz refletir sobre como conhecemos pessoas que vivem dessa forma e muitas vezes não conseguem se libertar, nem mesmo por um dia! E nos podemos fazer a diferença na vida dessas pessoas, basta apenas tentar!!!

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  2. Êba! Adoro chuva...

    Bem, o legal das crianças é elas não ligarem muito se vai dar certo ou não, se vão reclamar ou não, se é aceitável ou não... Faz-se porque é legal, ora! =D

    Hoje, se eu canto uma música perto de alguém, tenho que me justificar. Se eu sento numa janela, vem gente me chamar de louca. Se eu brinco de esconde-esconde com as (outras) crianças, ficam rindo de mim e estragam a brincadeira... =(

    Isso quando não vem cobrar um milhão de coisas e dizer: "Você já tem quase 18 anos! BlaBlaBla. Tem que ser responsável!"

    Não é que a gente nasceu pra ser criança. É que a gente nasceu pra não se preocupar, como todos os outros animais, que não ficam discutindo a "fenomenologia de Husserl". Bem, é dado pensar demais e isso tem aumentado bastante nossa expectativa de vida, né? (Pra quê esses anos a mais? Pra trabalhar pra indústria? Pra escrever um livro que ninguém vai ler?). A eterna criança não cabe dentro do sistema que criamos(criamos vírgula! eu não criei nada além de meia dúzia de textos ruins). Tem que fazer faculdade, trabalho pra congresso, entrevista... Tá, nem tem que fazer isso, mas aí ia fazer o quê da vida?(Pescar e caçar, por exemplo, seria uma boa!Ér... NÃO!)

    Isso aqui é bem vazio mesmo. A vida só serve pra viver.

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  3. (Quero escrever mais, tio! Posso?)

    Tá, a vida é tão assim, servindo apenas pra viver, que não existe razão nenhuma para eu estar agora mesmo escrevendo isso. É uma distração, um exercício do nada, um preenchimento de horas, uma significação de si mesmo, um compartilhamento de dados que não chegarão a lugar nenhum, pois não são prováveis. Isso é a vida! Ficar simplesmente fazendo coisas e sequências ordenadas delas até que se morra, sempre afastando a idéia de morte para o mais longe possível... Nós somos tão inábeis na tarefa de viver pensando, que a própria idéia da nossa morte não é concebida como real. Quando muito, se pensa na de outras pessoas, coloca-se a si mesmo por uns instantes no lugar e logo a idéia foge. Como eu escrevi uma vez, só os suicidas entendem realmente o que é um clichê...

    Tudo aqui ao redor é visceral, tudo pode dar uma doença, tudo é esforço demais. E veja que eu desisti de entender. Tô só falando dela e colocando adjetivos...


    [E se a gente soubesse? E se a gente soubesse? Será que há mesmo mais alguma coisa pra saber?]

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  4. É.. a tão sonhada LIBERDADE. Passamos uma vida inteira lutando e buscando.. E paradoxalmente, quanto mais velhos ficamos, menos a temos. Talvez a liberdade absoluta, tenhamos apenas na infância. Infância, onde nem sempre há liberdade no agir, vestir ou no falar.. Mas onde a liberdade no sonhar é máxima. Não há preconceitos, não há idéias formadas. Não há limites..
    Depois, com os centímetros adquiridos, de maneira inversamente proporcional e numa escala exponencial, a liberdade vai se tornando cada vez mais distante. Estudamos e trabalhamos uma vida inteira, para alcançar a liberdade financeira. Passamos pela fase de liberdade amorosa, e nos fixamos (nem sempre) a alguém. Juntamos dinheiro, problemas, filhos, móveis e imóveis.. e no fim, quando julgamos o tempo adequado para usufruir de toda a liberdade que adiamos, não temos mais saúde suficiente, disposição, vitalidade.. e os sonhos, de tão limitados, se tornam insuficientes.. sem valor.

    Talvez hoje eu não esteja num dia bem otimista... rs. Mas acredito do fundo do meu coração que nem sempre é assim. Que ainda existem sonhadores como eu, que buscam mudar essa história e fazer de cada ano que se passa, um ano melhor, bem vivido. ;)

    Adorei.

    Smack!

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  5. Concordo com Sayuri, é a almejada liberdade, que quanto mais envelhecemos nos escapa os dedos. É incrivel ver crianças desfrutando esse sentimento que muitas vezes não conseguimos sentir puramente. bjo!

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  6. Oi Adriano, tudo bem?
    Acabo de ler o seu post, desculpa a demora... Minha última semana na faculdade foi um inferno, tive algumas provas pra fazer...
    Você tinha dito que é o primeiro capítulo do seu livro, não é? Vai publicar cada um dos capitulos como numa novela?

    A história é tão bonita... A imagem de Alberto na janela me reflete aquela sensação de "nó na garganta", sabe? E não é só de não se viver a infância que vivemos inclausurados, cada um sabe a prisão em que vive... Dar liberdade ao Alberto pode significar a muitos leitores seus que é possível se libertarem das suas prisões pessoais, se quiserem...


    Você é incrível, te admiro muito! (ou pra ficar mais esclarecido: és um cabra da pééxte! hahaha)

    Um beijo!

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  7. "Talvez a liberdade absoluta, tenhamos apenas na infância"

    eu não sei se na infância somos de fato livres, mas é por essa época que temos a certeza de que podemos ser livres, talvez a liberdade da infância seja poder acreditar em tudo que quisermos, a realidade não nos tocou, e temos a liberdade de crer que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes

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  8. eu me ví aqui ó: "O único ser que conseguiu tirar o rapaz do isolamento foi um garoto, bastante extrovertido, baixote e gorducho de nome Adriano, que com um tempo, conseguiu inserir o nosso herói num restrito grupo do colégio"

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  9. Talvez a tão sonhada liberdade está tão próximo que não as observamos ! ��

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