quinta-feira, 27 de maio de 2010

UMA COMÉDIA HUMANA


      Ane era uma garota muito estranha. Desde que pôs as mãos no primeiro livro aos seis anos ela não parou mais de devorá-los. Não é por acaso que ser aprovada entre os primeiros lugares do disputadíssimo curso de medicina não foi exatamente algo muito difícil pra ela. O pai comunicou-a que iria presenteá-la com um automóvel como prêmio pela façanha, no entanto, para surpresa dele e da mãe ela declinou do presente. Alegou que adorava utilizar ônibus, seja porque sempre podia conhecer gente nova, ou ainda porque teria tempo para ler durante as viagens, coisa que jamais seria possível se dirigisse. Imagine só pai perder tanto tempo da vida só guiando um carro, quantas páginas a menos teria que perder por isso? Acrescentou que se quisesse presenteá-la com algo, aceitaria de bom grado a coleção completa da comédia humana de Balzac. Atônitos os pais se renderam a tão incomuns argumentos e comprou-se a comédia.

        E qual não foi à surpresa de Ane no primeiro ano de curso ao perceber que seus colegas de academia tinham verdadeira ojeriza a leitura. Só tenho tempo de ler livros de medicina, repetia o coro. Ane só não conseguia entender onde o mesmo coro conseguia tanto tempo para festas semanais, churrascos, calouradas e festinhas a cada módulo. Mesmo com tal raciocínio em sua defesa, Ane às vezes lia os livros “proibidos” quase que furtivamente, parecia crime estar com Proust nos braços enquanto as vísceras e os ossos tomavam tanto tempo da vida dos colegas.

Ela nem sonhava que essa estranha mania de ler, pensar e refletir demais iria um dia perturbar a paz da academia, mas aconteceu. Imaginem a cena: vinte jovens vestidos com jalecos nos quais bordaram "orgulhosamente" seus nomes acompanhados de "Acadêmico de Medicina". Eles estão trancados numa sala. Essa sala é repleta de um líquido volátil e cancerígeno: formaldeído, também conhecido como formol (ou "líquido de embalsamar").


Cada um está diante de uma das vinte mesas que compõem a sala. Em cada mesa há uma peça, não nada de Shakespeare nem tampouco alguma espécie de jogo com requintes de resistência. A peça em questão que eles têm diante de si é um cadáver! Ou melhor, o que sobrou dele: são dezenas de pernas e braços, cabeças e abdomes, mãos e pés, aqui ou acolá um corpo sem olhos, outro sem orelhas. Tudo bem, sem dramas, muitos deles estava bem pior em vida. Mas voltemos ao desenho do quadro, esses corpos estão todos alfinetados e com linhas amarradas. Você poderia pensar que tratar-se-ia de alguma espécie de macumba ou vodu? Que nada! Isso é pra indicar as partes anatômicas que os jovens "têm" de saber. E não basta saber, tem-se que colocar isso no papel. É a famosa e temida prova de anatomia, onde se têm a ilusão que é possível aprender todos os ossos, veias, órgãos e sabe-se lá mais o que faz parte do corpo e gravá-los na memória até o final do curso, ou será da vida. Ah, e tem um senhor no centro da grande sala, que diz, de minuto em minuto: "Roda!". Sim, porque não adianta saber e colocar no papel, isso tem de ser feito rápido. Ah, e não adianta saber, colocar no papel e ser rápido, pois se você não fizer isso em pelo menos 70% das mesas, passará pela humilhação de ter seu nome exposto no mural principal (da universidade federal para a qual você "orgulhosamente" passou), como um comprovante de "incompetência". Ah, mas ainda tem a cereja do bolo: a sala tem janelas superiores pelas quais vemos a copa das árvores e o céu... E lá estava Ane, olhando por essas janelas, quase voando através delas, lembrando das frondosas árvores da antiga França onde provavelmente Sthendal, sentado à sombra de uma delas recriava a raça humana na ponta de uma pena. Nisso estava perdida com a ponta de um dos alfinetes nas mãos (e "desperdiçando" seu "enorme" minuto), quando abaixou a vista havia esquecido onde exatamente devolver a danado. Ouviu o pavoroso roda, enfiou o alfinete em qualquer lugar da cabeça que estava na mesa, respirou fundo e seguiu. Tudo parecia ter bom termo quando uma colega, linda, loira, rica e fútil, que provavelmente jamais havia posto os olhos num Zola, mas definitivamente observadora exclamou: "Professor, alguém tirou o alfinete no canto nessa peça!" Aí todos os 19 começaram o burburinho, o professor correu pra ajeitar, alguns colegas aproveitavam para adiantarem-se nas outras mesas para antecipar as questões, dois estava lutando com o professor quanto ao verdadeiro destino do alfinete, a loirinha começou a chorar gritando que a prova deveria ser anulada, outros conversavam sobre a escalação da Seleção Brasileira e Ane ficou aterrorizada? Que nada, ela ria, mas ria desesperadamente, dava gargalhadas mesmo! E questionava como era possível se criar uma peça tão hilária como aquela? Nelson Rodrigues não comporia nada mais cru nem tão exposto. Ah, talvez por isso o nome da sala seja "anfiteatro"! Refletiu.

Ane tirou a nota máxima, para variar. Formou-se com louvor e trabalhou no árduo e nem tão bem recompensado ofício de médico durante muito tempo. Mesmo formada, durante muitos anos ainda preferia pegar ônibus. Na profissão vivenciou toda dor, tristeza e frustração inerentes a um ofício que inclui enfermos. Trabalhou muito, mas não deixou os livros até que a ausência de visão aos oitenta e sete anos a forçou aposentar-se de ambos. Mesmo doente e sem enxergar, Ane até o último suspiro não deixou de sorrir e sempre tentava lembrar-se da singela e bela visão da copa das árvores.
by- Adriano Cabral

PS: Livremente inspirado em fatos reais descritos num e-mail de uma grande amiga a quem tenho a mais alta admiração e estima.

9 comentários:

  1. Adriano, em seu plano para conquistar o mundo, deve ter traçado um plano específico para cada área. Este texto quer obviamente conquistar a classe médica, justamente por a parecer afastar: ora, não é costume de todos nós nos incluirmos entre os "bons" da história? Brincadeiras à parte, será que o médico ou estudante de medicina que aqui entrar vai ao menos cogitar a possibilidade de estar entre os "lindos, loiros, ricos e fúteis"? Haha.

    Como sempre, abunda criatividade... e França: Proust, Balzac, Zola, Stendhal... Aliás, será que dá França x Brasil na final da Copa? Cruzes! Acho que tô ficando que nem os coleguinhas da Ane! rs.

    Beijo! =7

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  2. hauhauahauhauah gostei muito desse texto!!
    quem será Ane?! não me vem ninguém em mente!rsrsrs
    adorei="linda, loira, rica e fútil"(ri muito altoooooooo!)
    essa parte tbm="passará pela humilhação de ter seu nome exposto no mural principal (da universidade federal para a qual você "orgulhosamente" passou), como um comprovante de "incompetência""(kkkk quase cai da cadeira!!!kkkk)
    E nem vem com essa de que só temos tempo para livros de medicina,mentira!!!De Proust eu entendo, por acaso não foi o químico que lançou a Lei das proporções definidas que leva seu nome(famosa Lei de Proust!!)kkkkkkkkkkkkkkk
    Brincadeiras a parte, adorei o texto!!!
    ps:advinha quem é!!!!!rsrsrs(pergunta pra ANE Adriano!)

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  3. É incrível como passamos 6 anos tentando 'aprender' todos os trocentos ossos, músculos, tendões, veias, artérias, e 'sabe-se lá mais o que faz parte do corpo', até finalmente alguns poucos 'loucos' conseguirem.. e gastamos uma vida inteira para entender um único órgão. O coração. Na verdade, não o coração literal, mas o coração da mente. É quase um provão de anatomia.. Não sabemos muitas das respostas e só quando a prova termina, lembramos o que deveríamos ter feito, escrito.. enfim! E se uma questão é sombria, nada que um "Roda" não possa resolver.. rs..
    A diferença é que na hora da nota, nem sempre precisamos ter acertados todas as questões para ganhar um 10. No quesito coração, a regra é bem simples. Ganha maior pontuação aquele que até o fim da vida, utilizou-se de todo o potencial que ele poderia dar. Se desfrutou intensamente de todas as emoções.. para então ser aprovado no "provão" da vida, e aprovado 'com louvor'..
    Na "jornada acadêmica" dos sentimentos, o coração nunca se forma. As vezes parece ser tão burro! Repete e repete a mesma série.. comete os mesmos erros.. Mas um dia ele aprende e passa de semestre. É um aprendizado para a vida toda.. Então, quando enfim as células miocárdicas deixarem de funcionar, espero ter usado ao máximo o meu caro coração. E se na vida não receber a aprovação de todos os "juízes" da banca, ao menos receberei um "Bravo" do Rei da criação. Ele olhará para mim e dirá: Entre tantos seres humanos criados, enfim encontramos um que realmente viveu!

    ;)

    Lindo texto.. rí demais. Rs. Não sei quem foi a amiga, mas com certeza é gente boa.. o Dom da medicina é lindo demais!

    Smack

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  4. E você ainda diz que eu não passo por aqui! Imagino o trabalho que não deu pra fazer esse texto mesmo... Gostei muito para variar... Gosto ainda mais quando sei de suas inspirações e dos seus porquês. Beijo!

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  5. AAAH, como eu odeio prova prática de anatomia! Você descreveu tão bem, que me senti numa delas, que terror! Lindo seu texto, Adriano!! Não pude perceber a real graça por trás dele, afinal, não conheço a Ane ou aquela loira fútil da vida real, mas captei acho que captei a mensagem! rs Grande abraçooo! Saudades de ti!

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  6. Jessica e demais. Não sei se a "comédia" está nas pessoas em si, acho que estaria na forma que as pessoas estudam nas universidades. Veja que a prova mais parece uma linha de montagem, onde o que importa é a velocidade e a habilidade de decorar. Inteligência não é exatamente requisito máximo para tal prova. Eu acho que no final das contas, na maioria das universidades não só de saúde, mas de direito também, falta mais HUMANIDADE. Lembrar que somos seres humanos...e talvez fosse interessante sempre que possível " observar as copas das árvores".

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  7. na hora que terminei a historia senti m arrepio credo mais a historia é linda

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  8. mais humanidade...realmente falta a todos, todos, reconhecer a própria humanidade, mas quem quer ser humano? uma vez minha pscicóloga para explicar as minhas próprias palavras me contou sobre uma paciente que havia sofrido com a rejeição do namorado e ela afirmava em meio a lágrimas que desta vez seria fria, que não se importaria com mais nimguem, ah porque se humano? sejamos frios, sem sofrer e acreditando na ilusão de que não sentimos,, assim como a menina que era tão fria mas se comovia com sua situação... como somos bobos U_U

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  9. Amar está no ápice dos nossos objetivos de felicidade... Parando pra pensar... Que outra coisa no mundo pode dar maior prazer, maior transbordamento, que o amor? que o sexo?

    É até chato isso... Você tenta ser frio, tenta se proteger no isolamento... Mas não adianta. Nosso corpo, nossa alma, se é que isso existe e se é que existe separação nessas coisas... Enfim... Surge uma possibilidade de amor e nos revolucionamos... E acho que, como tudo tem seu preço... Poucas coisas podem doer tanto quanto a perda do amor.

    Olha o que o poeta disse, que perfeito...

    Amar

    Que pode uma criatura senão,
    entre criaturas, amar?
    amar e esquecer,
    amar e malamar,
    amar, desamar, amar?
    sempre, e até de olhos vidrados, amar?

    Que pode, pergunto, o ser amoroso
    sozinho, em rotação universal, senão
    rodar também, e amar?
    amar o que o mar traz à praia,
    o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
    é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

    Amar solenemente as palmas do deserto,
    o que é entrega ou adoração expectante,
    e amar o inóspito, o áspero,
    um vaso sem flor, um chão de ferro,
    e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

    Este o nosso destino: amor sem conta,
    distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
    doação ilimitada a uma completa ingratidão,
    e na concha vazia do amor a procura medrosa,
    paciente, de mais e mais amor.

    Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
    amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

    (Drummond)

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