domingo, 28 de março de 2010

UMA VELA PARA ISABELLA



Ana não conseguiu chegar ao hospital, Isabella saltou para o mundo ansiosa para respirar e viver, dir-se-ia que seu grito ao chegar a este mundo não lembrava o tradicional choro dos bebês e sim uma proclamação de vitória de alguém que contra tudo e contra todos estava lá, viva. Ana sorria, mas tinha medo, afinal já havia perdido três oportunidades, dois abortos e um natimorto, logo o côro da vizinhança era: "Será que esse vai vingar"?
Mas vingou, e Isabella, mesmo franzina foi logo se arrastando pelo chão de barro trelando lá e cá para o desespero de Ninha, que mesmo aos doze anos já exercia a função de babá enquanto Ana e seu marido Alexandre estavam trabalhando nas ruas, ela como vendedora ambulante ele como flanelinha de estacionamento.
Quando Isabella completou um ano, não houve festa, mas Alexandre foi tomar pinga com os amigos e Ana ficou em casa com sua menina agradecendo a Deus por mais uma barreira vencida, a de um ano (todos diziam: não chega a um ano) lembrou com carinho da jovem Dra. Kawamura, médica da família, que sempre repetia: Sua filha vai chegar aos setenta Dona Ana.
Os anos foram passando, a vida continuava tão difícil como sempre fôra. Mas agora Isabella tinha sua própria cama achada em ótimas condições no lixão perto da rua do cisco (Rua que tinha esse nome porque os urubus viviam por lá ciscando) e a casa de único cômodo ficou menor. Por mais cuidado que Ana tivesse com a filha, as doenças eram inevitáveis, ainda mais por viverem numa zona alagada e sem saneamento básico. O vaso sanitário era um tronco ôco que dava para o rio.
      Prestes a completar cinco anos Isabella estava sem querer comer, sentia náuseas, ânsia de vômito. Pegar ficha no posto de saúde às quatro da manhã para eventualmente ser atendida aos onze nem pensar. A coisa era urgente. Alexandre achou um remédio de vermes e deu pra menina, nada dela melhorar. Começou a febre muito alta, diarréia intermitente. Dona Ana foi ao posto e não tinha médico, depois de horas na fila de espera no hospital entre berros e choros de outras tantas mães e crianças ela foi atendida. A médica, completamente distante da atenção e da simpatia da Dra. Kawamura, que por sinal tinha se mudado para São Paulo, nem olhou para mãe e filha, perguntou os sintomas e disse: É virose. Passou uns poucos remédios, muito líquido e repouso, tudo isso em um minuto e trinta segundos.
Desconfiada, Ana voltou pra casa medicou a filha e nada dela melhorar. A febre aumentava, era madrugada, neste mesmo dia Isabella completava cinco anos. O barraco tinha uma janela que dava para rio, sentada no banquinho, com a filha nos braços, Ana não tinha coragem de dormir,  uma sensação ruim dizia que se ela adormecesse, sua filha iria embora para sempre...


Alexandre ressonava na cama, não tinha tempo para esses sofrimentos antecipados que só as mães tem. Ana fazia muito esforço para manter as pálpebras erguidas, a filha chorava baixinho, estava suja, a mãe cansara de levá-la ao tronquinho, a área anal estava cheia de assaduras, as moscas e muriçocas se fartavam no sangue e na carne de ambas, a dor era boa, ajudava a mantê-la acordada. Mas ela não conseguiu, adomerceu.

O enterro foi rápido. Cova rasa, só os pais, ninguém tinha tempo para ir em sepultamento de pobre. O coveiro segredou para Alexandre que ele não ficasse triste, afinal, isso era tão comum, já eram doze crianças que só essa semana eram comidas pela terra nas mesmas condições. Não era azar nem marcação divina, era só a vida. Alexandre apenas baixou a cabeça, teve que ir, era dia de muito movimento onde ele guardava carros. Dona Ana já estava cansada de chorar, a dor e o desespero era tamanha que ela parecia agora um zumbi. 
Encontrou várias vizinhas no caminho de volta pra casa, cabisbaixa, ouvia frases do tipo " Viveu demais", "Fique satisfeita foi pro céu", "Tenta outro, quem sabe dura mais um aninho". Muitos nem olharam pra Ana, estavam entrertidas demais vendo a televisão que noticiava a condenação de dois criminosos com todo alarde que os crimes merecem ter quando caem na "boca da grande mídia".
Quando estava ja vendo seu barraco ao longe, pôde ouvir tres mulheres conversando. Uma delas dizia:
- Coitada de Isabella, que menina linda, parecia uma princesa. A outra emendava.
- A mãe Ana, deve esta sofrendo muito, ela não merecia isso, coitada, chorei tanto quando vi a cara daquela mãe tão sacrificada, tão sofrida.

Ana ficou surpresa com tamanha comoção e solidariedade dessas três mulheres diante do suplício, até então solitário, dela e de seu marido, correu em direção as tais mulheres que ela nunca tinha visto. E disse:
- Vocês são pessoas muito boas em chorar e lamentar a morte de Isabella, pensei que só eu me importava com ela.
Ao ouvir as palavras de Ana, as três mulheres pareciam muito surpresas para falar algo, uma delas resolveu dizer:
-Nem vem minha filha, todo mundo que sabe das coisas e tem coração lamenta muito quando um anjinho daquele vai pro céu.
- Foi um crime bárbaro, como alguém faz aquilo com uma menininha tão linda...
Naquele instante Ana lembrou da médica, com certeza ela era uma criminosa sem alma...
Nisso a mulher mais velha tirou da bolsa uma vela e disse:
- Olha dona, hoje nós aqui do bairro estamos acendendo uma vela para Isabella. É uma ONG da paz que distribuíu por toda comunidade, vamos protestar contra violência. Ainda bem que aquele casal foi condenado, malditos.

Ana não entendeu mais nada, as mulheres perceberam que no mínimo, estavam diante de uma desinformada que não sabia das coisas e uma delas completou.
- Malditos do casal Nardoni que matou há alguns anos a filhinha Isabella. Claro que você sabe disso, é por ela que estávamos lamentando, que violência. Dito isto entregou a vela para Ana que recebeu estúpidamente, quase em choque. Reze pela menina, pela menina.
Ana não parou mais de chorar até chegar em casa. Sua filha morrera, não deu no jornal, não foi noticiado na tv, os vizinhos fingiram que não viram nada, ou acharam normal, os amigos torceram a cara e ela tem até vergonha de chorar por ela, afinal, era tudo tão... normal. E agora, ela estava sabendo de outra menina, com a mesma idade de sua filha que morrera assassinada e todo mundo parecia lamentar por ela.
Na penumbra conseguiu ver as inúmeras chamas que ardiam no bairro todo, até o outro lado da margem do rio, todas elas lembrando da jovem assassinada. Vendo isto, pegou sua vela, pensou na estranha morta e desejou que Deus a guardasse, pediu perdão a Ele, pois declarou que naquele instante, com tanta gente já chorando pela menina da tv, ao menos aquela única vela, seria pra sua filha, Isabella.

by- Adriano Cabral

domingo, 21 de março de 2010

RELAÇÕES TÓXICAS



     
       Há um bom tempo tenho ouvido e lido sobre relacionamentos amorosos e sempre tenho observado que algumas relações, por mais “amor” que aparentemente tenha entre o casal, tais relacionamentos são grande fonte de dor e frustração tanto para um como para o casal no todo. Por que isso acontece? Já vi várias explicações, inclusive neste blog os textos “Matando o Verdadeiro Amor Espalhando Ilusões” vão nesta linha. Quero acrescentar algumas reflexões que tive diante do contato com os escritos do filósofo Pierre Levy sobre o tema. Ele defende a idéia que a “origem do mal” é que o ser humano não aceita a sua solidão e o sofrimento decorrente dela, logo, necessita sempre alguém com ele para “devorá-lo” transferindo no processo para os outros todos seus sonhos, desejos e também suas frustrações e dor. Pensar que alguém representará tudo na sua vida é o primeiro passo para o fracasso. Então, antes de tudo as pessoas devem aprender a encarar o sofrimento, não abstraí-lo ou maquiá-lo, mas senti-lo em sua plenitude, aprender a conviver com ele é imprescindível para uma relação saudável com outra pessoa, sem esperar dela... Tudo.

      Se ao encarar o seu sofrimento você identifica que outra pessoa possa ser a fonte dele, você deve falar sobre isso com ela, mas nunca quando as emoções estiverem à flor da pele, mas com calma, se possível frieza e honestidade. Quem agir com urgências de sentimentos, no impulso, acaba tomando falsas decisões que podem ser definitivas, pois alguns males simplesmente não têm conserto. Se os problemas persistirem não há outra solução senão afastar-se. Não importa o que você sente ou acha que sente, nada pode justificar perpetuação de uma relação tóxica. Cultivar tal relação é tão doentio ou mais danoso como cultivar o uso constante de drogas psicotrópicas. O afastamento, de preferência deve ser físico e mental, mas se fisicamente não for possível temos que ao menos nos afastar internamente. Só é bom não confundir crises eventuais no relacionamento, que é normal e é superável, com conflitos constantes e duradouros, típicos das relações tóxicas.

      Identificamos alguém com propensão a desenvolver relações tóxicas quando ela costuma a não assumir suas responsabilidades nem para o bem nem para o mal. Do mesmo modo que ela se vitimiza com freqüência, ela sempre atribuirá sua felicidade ao fato de outra pessoa ter interferido em sua vida. Justamente, esse suposto reconhecimento do mérito alheio vai ser a desculpa para livrar-se do peso de seus atos numa situação futura. Portanto, da mesma forma que essas pessoas aparentemente se doam na relação, elas super potencializam cobranças e dramas, não raro, desnecessários.
      Finalizo esse texto com uma citação de Buda: "Se o viajante não encontrar um companheiro igual, ou melhor, que não sofra a companhia de um insensato,
mas caminhe decididamente só".

By- Adriano Cabral

domingo, 14 de março de 2010

Por que... Te amo!



Andei de bar em bar, de festa em festa, agredi, levei porrada e um dia me vi acordando na sarjeta num velho clichê, despertando com o beijo do cão vagabundo.

Deletei e-mails, fotos, postagens do blog. É claro que te expulsei do orkut, msn, icq... Mas não foi suficiente, acabei excluindo qualquer amigo em comum que um dia pudesse nos unir nesse mundo.

Joguei fora presentes, roupas, cartas e qualquer coisa que deixasse mais viva a tua lembrança...

Fiz terapia, reescrevi nossa história e transformei-te em vilão e hoje todos que andam comigo fazem coro pra me lembrar do  porque não devo nem recordar mais tua existência.

Mudei de cidade, mudarei de país, conheci novos amores, inventei tantos outros, e quase acreditei que te esqueci.

Desliguei meu telefone, vou mudar meu nome, vais acreditar até mesmo que morri
Cultivei a mágoa, o ódio e o desprezo e lembrei de todo desespero que contigo vivi.

Ignorei teus e-mails, cartas e apelos, não quero nem mais ouvir a mim.

Eu preciso reaprender a ser feliz.

by- Adriano Cabral

sábado, 6 de março de 2010

TODAS AS MANHÃS DO MUNDO - PARTE 2


AVISO: Antes de ler este texto leia a primeira parte logo abaixo.
—Como? Repetiu friamente a voz de outra lado da linha.
—Não faz isso comigo! Retrucou, dolorida a outra voz quase sumida.
—Não sejamos ridículos, isso não cabe mais, não sejamos ridículos.

Ridícula foi aquela cena na praia. Se portou com uma garotinha chorona. Que grande figura deve ter parecido para ele. Uma louca! Mas de verdade, daquelas que só se encontram na Tamarineira. Sabia que a sua falta de experiência seria prejudicial ao encontrá-lo, deveria ter feito com Florentino Ariza que colecionava amantes de verdade e não só “ficadas” de adolescente, assim estaria melhor preparada quando o encontrasse. As suas palavras tiveram a força de um raio que despedaçou completamente num só golpe a porta que dava acesso a sua alma. Ela se sentia ainda forte, mas nunca tão frágil, nunca tão indefesa no mundo, e pela primeira vez descobriu o prazer de não ser independente. Mas eram muitos sentimentos se contrapondo e o medo da rejeição vinha junto ao gozo daquelas setas de cupido desferidas em poucos segundo, seria ela merecedora? Não! Não! Era ele sim, e se ela estiver correta, por mais desatinado que tenha sido seu comportamento ele voltará.

E o telefone emudeceu, e agora restou um nada, uma dor que crispava seus nervos, gelava sua alma. O desespero imperava. Ligou novamente, agora alguém teria que ouvir tudo que tinha para dizer.

      Cada beijo a enlouquecia mais, ela se deixava comprimir pelo abraço forte dele, cada beijo era depositado num lugar diferente de seu corpo, cada um era lento, suave, uma reverência, forte como um golpe de morte, intenso ressuscitando a alma. Cada beijo era como uma nota musical transformada num gemido, cada uma fazia descobrir um novo significado para o prazer. Ela, totalmente entregue, permitia livre acesso para mãos que exploravam com maestria caminhos nunca antes conhecidos por homem algum. Cada toque um desespero, explosão de desejo, abria um novo caminho, e ela fazia de tudo para deixar as trilhas mais acessíveis. Não havia outra coisa a fazer senão permitir, o tudo, naquele ritual magnífico de amor. Algum tempo depois, ficou se perguntando como ele conseguia fazer tanta coisa num espaço tão pequeno de um automóvel. Repentinamente ele parou. Ela nada falou, puxou-o para si com violência, queria mais, queria que aquele momento fosse eterno ou que sua vida fosse ceifada ali, assim, poderia morrer feliz. Ele disse que era melhor parar. Ela ficou possessa, que absurdo era aquele? Que loucura! Porque parar? Indagou ainda ofegante.
— Eu te amo e te respeito, mas você é apenas uma garotinha. Disse ele em voz baixa ainda ofegante.
A resposta de Daniela foi um tapa que desferiu com toda sua força no rosto de Alex. Este permaneceu da mesma forma que estava, com o olhar desolado. Após a agressão, nada disse, apenas deu partida com o carro. Parecia não dar importância às súplicas dela pedindo perdão. Ela já não era a fortaleza e a serenidade encarnada que conhecíamos a algumas linhas atrás. Era dele, uma coisa dele, e se orgulhava disso. Só sentia o desespero ao imaginar que poderia perdê-lo de repente. Em seus 15 anos de vida jamais tinha sido tão feliz. Alex estava com ela o dia todo, e até mesmo em seus sonhos. Tudo isso ela repetia para ele, dizendo que se ela era ainda uma menina, seria sua menina, e ele seu papai de 23 anos. Não era a primeira briga por esta razão. Mas até aquele momento ela nunca havia partido para as vias de fato. Se eles se amavam porque não poderiam consagrar seu amor naquela cópula que com certeza seria abençoada por Deus? Ao dizer isso seus olhos brilhavam tanto que não foi possível impedir o que aconteceu em seguida, o carro ainda estava em movimento enquanto ela punha as mãos nas coxas dele, em movimentos contínuos e ida e volta, até que suas mãos foram e enfim se detiveram, segurando algo quente, firme, úmido e macio. Os olhos dela ardiam, e após encontrar os dele, aflito no volante ela o beijou tão lascivamente que o carro quase bate na calçada. Ele não resistiu e encostou o carro em qualquer lugar e na cidade do Recife começou a chover torrencialmente enquanto o fogo ardia num automóvel em alguma rua escura.

— Eu já não te disse para não ligar?
— Olha, pois agora vou te punir....

— Isso não é normal, não é sadio, acabou entende? Acabou!

— Olha que agora vou te punir

— Vou desligar esta merda de telefone e não quero que você me ligue nunca mais...

— Nunca mais... com certeza, você quer que eu atire no peito, na boca ou na barriga?

— Isso realmente é coisa de maluco? Como é que pude me envolver com alguém como você.

— Ontem eu era tudo para você... minha loucura te encantava, mas cansei, vou matar nós dois e acabar o sofrimento, e tudo realmente ficará perdido...
— Para com isso! Que coisa, seu draminha pessoal não irá me comover...
— Perdido...

— Tenha dignidade...

— Dignidade... dignidade... preciso de dignidade...

— Pô! Tou chorando de novo... nunca pensei que iria chorar por alguém.... ainda mais por você... Só lamento que ninguém vai saber de toda riqueza que nós temos, de toda uma vida linda e particular que existiu... e você agora, jogando tudo fora... mas você vai sofrer, pois, se vamos morrer, a culpa é toda sua...

— Sabe de uma coisa, você não quer se matar? Atira logo e me deixa em paz....

(estampido) de um lado um grito, de outro um estremecimento.
—Ah! Estamos morrendo.... estamos morrendo....

—Deus! Será que sua loucura é real? Você fez mesmo?

— Nós não devíamos morrer... não é just...
(entre soluços a voz sumiu)


Era como todas as manhãs do mundo. E quase ninguém no planeta saberá do drama que acabara de se passar. Não saiu nenhuma nota do jornal. Ao chegar em casa e ver o corpo inerte, com os olhos esbugalhados e encharcados de sangue, só restaram aos pais chorar a morte da cria querida.
Era como todas as manhãs do mundo e se, um dia após a morte do amor, você pôde caminhar na praia de boa viagem as 6:00 da manhã, viu mais uma vez uma menina ajoelhada na areia orando por alguém que não quis esperar o trem das sete, e partiu. E mesmo diante do sol majestoso que saudou as águas com seu tradicional espetáculo multicor, vista ao lado da menina, estava uma enorme vela acesa, pois dizem que só ela pode iluminar o caminho dos suicidas ao paraíso.

Era como todas as manhãs e mundo, e eu era a menina na areia, pensando na minha pobre amiga Daniela que sonhou e pagou tão caro preço do sonho e após duas horas, sozinha, sangrando em agonia, desapareceu da terra e agora estava deitada, para sempre, misturada na areia do esquecimento. Somente para ela, morreram todas as manhãs do mundo.

By-Adriano Cabral
05/10/00 9:00 Am