quarta-feira, 30 de março de 2011

O Melhor Texto de 2010



No ano passado este espaço publicou mais de cinquenta textos, dentre eles os dez mais lidos foram lançados em votação para que fosse escolhido o melhor texto de 2010. Curiosamente, assim como aconteceu no ano passado, a escolha recaíu em um texto que tem um grande valor pessoal pra mim.Para entender isto vou contar-lhes o que deu origem ao texto vencedor. Eu ainda era casado, minha então esposa era professora de língua portuguesa, tínhamos um filho que aos seis anos de idade já tinha na prateleira mais de cem livrinhos infantis. Sou aquele tipo de chato que não gosta de datas comemorativas como dia dos pais e aniversário, então até pra não gastar muito, sempre pedia para minha antiga companheira "dar-me" presentes que na verdade seriam do meu filho. Daquela vez havia pedido o jogo para PC das Crônicas de Narnia como presente do dia dos pais. Qual foi o meu espanto quando por erro ela comprou a coleção encardernada do livro de mesmo nome. Mesmo achando muito difícil, eu e minha antiga companheira nos alternamos em leituras conjuntas com nosso pequeno afim de inspirá-lo a ler o volumoso livro sozinho. Por mais que tentassemos, não conseguiamos seduzir nosso filho a ler um livro com mais de setecentas páginas e sem nenhuma gravura. Foi aí que tive uma idéia maluca. Entrei na internet, criei um site (na verdade deveria ser um blog, que ainda esta no ar aqui) que prometia "o melhor presente que os pais possam comprar" para a pessoa que primeiro terminasse todas as crônicas do mundo Narniano e o último lugar ficaria preso em narnia para sempre. Para completar meu plano criei uma lista com cerca de cinquenta nomes que disputariam o prêmio. Na lista inseri meu nome, da minha ex companheira e de nosso filho. Informado do concurso, o menino ficou num misto de euforia e medo, mas topou o "desafio". De repente nossso até então desinteressado leitor de livros sem "desenhos" começou a ler por horas a fio. As vezes chegando a avançar mais de 50 páginas num dia, o que é sem dúvida excepcional para uma criança daquela idade. Foram sete meses de leitura, quando sua dedicação esmorecia eu mudava a posição dele para os últimos lugares no site, ou ainda, inventava debates entre os concorrentes, com direito a provocações que mexiam com os brios do menino e faziam-no retomar a leitura (risos). Ao final, mesmo ele "terminando em segundo lugar" (afinal, não queríamos criar um filho presunçoso) nós demos o melhor presente que pudemos comprar. Mas o que talvez nosso filho até hoje não tenha percebido, é que o melhor presente do mundo fomos nós que recebemos quando há quase doze anos ele(Completa doze dia 06/04)nasceu e com sua vinda nós repensamos o sentido da vida e finalmente compreendemos o significado da palavra amor. E foi inspirado nele que escrevi a Lista de Narnia escolhido o melhor texto de 2010 por vocês leitores. Texto que no final das contas é uma declaração de amor a leitura e sobretudo de amor ao meu filho. Te amo muito!
Leia a Lista de Narnia aqui.. A propósito, há no blog um texto escrito pelo meu filho, O Coração Denunciador, quer conferir, leia aqui. E aguardem que ele tem um projeto de escrever um livro inspirado em mitologia nórdica ou africana. (menino levado). Um grande abraço a todos vocês.

domingo, 6 de março de 2011

Olinda - Aventura De Carnaval


Estávamos no final dos anos setenta. Eu, Tullios era uma criança cheia de medos e terrores. Um menino sonhador que vivia em um mundo que se encontrava entre o real e o imaginário. Vivíamos em uma casa modesta no bairro de Casa Amarela na cidade do Recife. Meus pais eram mais dois retirantes dos tantos que fugiram da eterna miséria do sertão nordestino, mas precisamente da Bahia. Como não podia deixar de ser, a família era grande, ao todo eram nove filhos, eu era a oitava cria da família Menezes. Ainda não tínhamos televisão.
Não obstante o grande rebanho, não passávamos fome. Necessidades sim, mas fome nunca. Meu pai ganhava muito bem em relação à média dos trabalhadores daqueles tempos, todos sempre diziam: Se papai tivesse menos filhos seríamos ricos. E cada um imaginava a família ideal, cortando uns irmãos aqui outro acolá. Mas o fato eram nove pessoas confinadas numa casa de três cômodos que no decorrer dos anos ganhou mais três quartos com a construção do primeiro andar.
Mas ainda estamos falando da casa de três cômodos onde num dos quartos dormiam meus quatro irmãos mais velhos, no outro, um pouco mais aconchegante, ficavam minhas três irmãs e por fim, no quarto maior ficavam os donos da casa. Eu dormia sozinho numa cama de campanha, na sala mesmo, enquanto minha irmã caçula, Denise dormia no berço com meus pais.
Todos os anos a família inteira se reunia para brincar o carnaval. Geralmente freqüentavam um clube que ficava pertinho de nossa casa. Eu odiava o carnaval. Minto, morria de medo. Arranjava mil desculpas para não ir para a folia e permanecer com minha tia Maria, que era evangélica e também ficava com a pequena Denise quando minha família saía.
Eram sempre dores de cabeça, no ouvido, no pé, uma moleza no corpo e tantos outros males que se é possível inventar. Entretanto, parecia que nenhum ardil funcionaria naquele ano. Minha mãe estava decidida a me levar nem que fosse de maca e tomando soro na veia.
Eu tinha ojeriza ao carnaval. Temia aquelas criaturas medonhas e sombrias que pulavam freneticamente sob um som muito alto e terrível aos ouvidos de qualquer ser humano. Aqueles cavaleiros fantasmagóricos com lanças em riste caminhando nas ruas, ameaçando os transeuntes. Toda aquela fantasia sinistra me punha a rechaçar qualquer idéia que me impelisse aquela festa. Só mais tarde compreendi que as criaturas medonhas nada mais eram que pessoas fantasiadas que pulavam de alegria ao som do frevo e que os cavaleiros de lança eram apenas os representantes do maracatu rural. Mas isso e muitas outras coisas só vim descobrir depois.
Enquanto isso, toda aquela atmosfera momesca me causava pavor. Ainda mais com o acréscimo que sempre ouvi de minha tia a dizer que aquela festa era patrocinada pelo próprio diabo.
Não parava de chorar. Implorava para não ir. Minha mãe tinha na face a mais sublime das irritações, como podia ser aquilo? Comprou-se até fantasia de Romeu, ficarás um brinco menino! Tantas pessoas sonham em brincar o carnaval aqui em Recife e principalmente em Olinda, e tu, o que me dizes? Ficas aí a inventar doenças? Não vês televisão filho? É o maior carnaval do mundo. Vais sim. E vais ficar um pão, tão fofinho que irás arranjar lá a tua Julieta. Pois é? Não adiantaram as chagas inventadas, os gritos histéricos, as lágrimas. Em pouco tempo estava lá, com armadura brilhante de papelão, uma capa, uma bainha sem espada e um belo e ridículo chapéu com uma pena no alto. Logo estava meus pais e toda ninhada da família Menezes esmagados dentro de um coletivo.
Entre os passageiros tínhamos uma índia e um vaqueiro sentados abraçados num banco de trás em altos beijos. Batman me espremia de um lado enquanto uma bela diaba, que estava ao eventualmente atracada ao que me parecia ser Deus e em seus constantes movimentos acabavam por me jogar pra cima do homem morcego. Confetes e serpentinas voavam a toda hora. No fundo do ônibus um grupo de bailarinas de barba e bigode cantavam desafinadamente músicas carnavalescas acompanhados por um batuque desvairado. Os instrumentos de percussão eram os bancos e o teto do ônibus que certo tempo depois veio a partir-se. O calor no coletivo a cada minuto aumentava. Era mais ou menos meio-dia e todas as janelas estavam cerradas com o intuito de se evitar que os passageiros tomassem banhos indesejáveis de lama e ovo podre que eram atirados em todos os carros pela multidão de gente adepta ao mela-mela. Um Bojudo lorde inglês em farrapos atropelou metade dos passageiros no momento em que correu pelo estreito corredor do ônibus a fim de saltar em sua parada. A fervura aumentava e o coletivo cada vez mais lotava. O suor escorria testa abaixo, o cheiro azedo daquela gente toda imprensada umas nas outras entrava forte nas minhas narinas. Cercado por todos os lados e sem ter onde me segurar acabei por abraçar as ancas da bela diabinha que vestia um pequeno trapo na parte de baixo de suas vestes. O contato com aquelas generosas carnes quentes e macias fez-me concluir que a viagem não era de todo má. Já bendizia o aperto do ônibus e começava a gostar do carnaval. A diaba ria do menino atracado a ela como fosse sua última tábua de salvação. Deus, piedoso como sempre, ao lado dela, também sorria, no final das contas, ele pensava provavelmente que as crianças daquela idade não sabem o que é lubricidade. Tinha razão o nosso senhor, até hoje não sei o significado dessa palavra. Mas que foi gostoso foi. Viva ao carnaval!
Mas tudo que é bom tem que acabar. Uma caixa de sabão em pó gigante onde havia escrito Homo-Sexual gritou que havíamos chegado. O coletivo defecou quase todos seus dejetos humanos na praça perto da prefeitura. E lá estávamos nós frente a frente com a folia, com aquela imensa multidão de gente que surgia de todos os lados, subiam e desciam as ladeiras, ou ficavam apenas parados a espera das agremiações carnavalescas ou a troças. As tais troças eram animadas desde orquestras completas ou apenas outro tipo de banda, composta de jovens e velhos batendo em latas vazias. Existe uma por sinal quem não tem instrumentos, jovens caminham pelas ruas com uma grande corda, gritando às 5 horas da manhã: ACORDA ou A CORDA, e os que despertam com a barulhada se juntam a troça barulhenta para acordar os foliões fatigados de farra. Mas o carnaval de Olinda tem de tudo, ou quase tudo. Era gente fantasiada de leite em pó, padre, velho, bebê, tinha até advogado com terno gravata e valise. Um maluco trajando roupas sociais passou tocando alucinadamente uma Alfaia.
Minha família queria subir primeiro à ladeira que levava a igreja da Sé de onde desciam e subiam as principais agremiações carnavalescas. Durante a subida, vendo o horror e o medo ainda estampado na minha face. Meu pai teve a idéia genial de comprar-me uma espada de madeira, com direito a bainha nova e tudo. Com ela em punho comecei a me sentir mais seguro. Era um cavaleiro no meio de demônios, mas agora estava preparado. Ai de quem me atacasse. Saltava de um lado para o outro brandindo a espada contra os inimigos, estes, achando engraçado o que para eles era uma brincadeira apenas sorriam ou simplesmente ignoravam. Aquela arma de brinquedo deu-me uma sensação de poder. Agora estaria pronto para enfrentar qualquer perigo. Era o próprio Amadis de Grécia ou de Gaula.
Exaustos, chegamos à igreja da Sé. A vista de lá é simplesmente espetacular. Vê-se dali toda cidade de Olinda, o porto do Recife apinhado de navios e o mar, o belo e vinoso mar que cerca as duas cidades irmãs. Mas podem ficar tranquilos, como não sou romancista, não tenho a capacidade que só eles possuem de descrever minuciosamente a majestosa visão que tomava conta de minhas, até então, pequenas e jovens retinas. Dito isto, continuarei. Posso?
Enquanto meus familiares comiam alguma coisa e esperavam alguma troça ou bloco passar, eu observava com curiosidade a grande igreja da Sé. Gigantesca aos meus olhos. Resolvi então que fazia-se necessário uma exploração daquele lugar cheio de mistérios. A igreja era cercada interiormente por várias árvores e um imenso jardim que para mim mais parecia uma floresta. Era impossível não ir lá. Por isso nem percebi quando minha família desceu aos pulos em direção à rua da Misericórdia atrás de Pitombeiras dos Quatro Cantos. Estava cego de curiosidade, galguei com certa dificuldade o pequeno muro do templo e saltei para dentro.
O pátio da igreja era só silêncio. Parecia-me que havia transposto um portal para outro mundo. A barulheira do carnaval sumira. Aquela floresta, aquele ermo, mexia com minhas estranhas, fazia arder meu peito, um convite para aventuras. Aquelas árvores frondosas, a solidão de seminário, a lembrança de velhas histórias que diziam que dentro das igrejas antigas se enterravam pessoas, levou-me a outra constatação: estava só, e, sobretudo perdido. O mundo começou a girar, o pavor profundo queimava minha alma, tudo ficava maior, agigantava e eu diminuía.
A minha coragem se fora tão veloz como surgira. Agora tudo era perigo, os sons agora que vinham do lado de fora agora podiam ser escutados, e eram aterradores. Gritos, só ouvia-se gritos e o farfalhar medonho de folhas, os galhos balançando como se quisessem ganhar vida tão somente para tomar a minha. Então, veio as torrentes de lágrimas que lavavam o a grama desperta, mas logo elas gelaram, pois o silêncio interior foi rompido por um grito feminino, distinto e próximo, um grito de desespero e súplica. Por trás deste grito havia algo mais aterrador, um poderoso ribombar de cascos. Não sei explicar o que se seguiu nos segundos seguintes, pois todo meu ser se petrificou de terror. Maldita hora que vim para carnaval, coisa do diabo, agora seria punido, nada mais adequado do que uma igreja. Naquele exato momento todos os pesadelos de menino medroso pareciam que iriam se concretizar, e da forma mais terrível do que a imaginada. Não me lembro como, só sei que no instante seguinte estava eu enfiado no meio do mato, de bruços, espreitando o muro e o portão da igreja. O barulho de cascos aumentava, já conseguia ver o demônio montado num corcel negro, que ao respirar, soltava pavorosas labaredas das narinas, e seu cavaleiro vinha reivindicar minha alma afim que eu vivesse todos os tormentos do inferno por toda eternidade. O barulho era tão intenso que pensei sentir meus tímpanos explodir. Gritei, mas da minha boca não ousou sair som algum, quando vi um vulto transpor num só salto, o muro que a pouco eu tivera dificuldade de galgar. Ao chegar do outro lado, que para minha desgraça era o meu lado, o vulto com formas femininas caiu no chão dolorosamente e então ele gritou, e três criaturas caíram do céu em cima dela. Eu permanecia escondido entre as folhagens, tremendo de medo, medo que me fazia delirar e ver as coisas, digamos, com certa “grandiosidade”. O fato que as três criaturas se preparavam para açoitar a pobre figura que, ainda no chão, implorava misericórdia. Enfiei os olhos na terra a fim de privar as minhas tão tenras retinas de espetáculo tão vil. Contudo, a curiosidade, doce irmã do medo, trouxe-me coragem, ao menos para erguer os olhos e mirar na menina que estava prestes a ser massacrada por aqueles demônios. Ao contemplar aqueles jovens olhos em chamas e as lágrimas a jorrarem miseravelmente daquelas lindas órbitas negras, fui de súbito tomado de uma bravura indômita. Era o próprio Amadis da Grécia, saltei com fúria sobre os demônios que estacaram espantados diante de minha audaciosa investida. Com espada em riste, brandi os mais violentos golpes que meus pequenos braços conseguiram. Ao sentir as primeiras bordoadas, o bando sumiu tão veloz que em pouco tempo já não se ouvia nem mais os uivos de dor, dor esta provocados pelas feridas, provavelmente mortais, causadas pelo meu terrível cutelo. Fiquei por alguns instantes estático no meio daquela selva, tremia muito, era medo, raiva e gáudio de mãos dadas, sentia o sangue correr em cada veia de meus braços, o vento balançava a minha capa, era um herói sem dúvida. Nascera para o ofício. Sir Tullios, o grande cavaleiro... Para completar a cena só faltava o maroto sorriso, como tal era impossível, veio o nervoso riso.
Essas importantes conjecturas foram quebradas por um gemido, ou lamúria? Sei lá, só sei que a menina ainda continuava de cabeça baixa, não sabia que tinha sido salva por mim. De repente, eu não sabia o que fazer. Afinal o que faziam os cavaleiros com as damas após resgatá-las?
— Por favor, não me bate!
Gaguejando um pouco, bem, confesso, gaguejava deveras, eu tentava ainda continuar com meu papel de herói, papel e a pose é claro, a pose era essencial, disse-lhe que não havia o que temer que ela estava salva. Olhando-a com mais cuidado percebi que ela também trajava roupas medievais. Eu continuava a dizer, agora com mais fluidez, que eu havia espantado os malfeitores que estavam a importunar a ... bem... bela dama. Esta última frase foi dita quase como uma pergunta, tinha dúvidas se constava no texto dos cavaleiros a tal “bela dama”. Ao escutar o “bela dama” ela sorriu. Amigos, ela sorriu. Isso não é qualquer coisa não, podes crer. Ela sorriu, e naquele momento nasci de novo. Não há exagero. Era como se eu ainda não tivesse existido antes de ver aquele sorriso, aqueles lábios, aquela luz. Foi um choque, um novo parto, mas agora prazeroso, onde eu via o mundo pela primeira vez, não com saudades do útero acolhedor e temeroso ao me deparar com o novo mundo, mas ansioso para conhecer e explorar todos os mistérios infindáveis que existe no seio da vida, a vida que começara ao ver aquele anjo sorrir, saía da escuridão para repousar meus olhos no brilho daquele sorriso que dizia tudo. Não havia mistérios a decifrar, não havia frio, mas apenas calor, calor amigos, inexplicável para aquele parto. E logo ao nascer percebi que naquele momento eu era outro, um Tullius reencarnado no mesmo corpo, mas a alma era outra, descobri naquele momento que até então havia vivido nas trevas, no umbral dos pecadores, e só agora, só ao vislumbra aquele sorriso, sorri, mudei e descobri a vida, ou talvez quem sabe tinha, como minha mãe previra, descobri a minha Julieta num dia de carnaval.
By- Adriano Cabral.
“Extraído do Romance Almas Perdidas”.