domingo, 13 de setembro de 2009

ALMAS GÊMEAS


(Cena belíssima extraída do filme Grandes Esperanças, onde um garoto é "amaldiçoado" com um amor desde a infância através de um inusitado e saboroso beijo)


          Ele acordara como sempre. Um salto. Estava ansioso para que o dia chegasse. Era Sábado. Ele poderia brincar o dia todo. Jogar vôlei. Era isso que mais queria fazer naquele dia.
Em pouco tempo ele já estava sob a janela do apartamento de seu amigo Alux chamando-o para sair. O próximo passo era chamar Meiriane, para que esta chamasse Paula, era o jeito. Que criatura odiosa era esta Paula, pensava nosso rapaz. Ah! O nome dele? Alex. Ele não suportava os modos superiores de Paula. Tanta altivez, vocabulário tão empolado para uma menina de 13 anos que fazia questão de quando não compreendida por algum amigo, de mandar-lhe eliminar a referida dúvida num dicionário de bolso que ela sempre trazia consigo, "para os iletrados". Uma menina cheia de não me toques, autoritária, queria liderar todas as brincadeiras, impor tudo.
Ô saco! Pensava Alex. Todos da turma a adulavam e faziam sua vontade. Exceto ele, é claro, jamais faria tal coisa, jamais se sujeitaria aos caprichos daquela pirralha. Ele mostraria pra ela quem é que manda quem era superior. Por isso, desde o dia que a conheceu, atacava-a sempre que possível. Aperfeiçoava seu vocabulário, que acreditava ele já ser ótimo, mas que agora queria maravilhoso, perfeito. Disputava com ela a liderança. Quando brincavam de sete corta, ela sempre era seu principal alvo. Provaria para ela quem deveria ser o líder ali.
Mesmo brigando quase todo dia, Paula e Alex estavam invariavelmente juntos. Mas sem trégua. Quantas indiretas ou alusões e remoques como prefeririam eles. Quantos testes intelectuais e de poder. Quantas farpas e verdadeiros mísseis eram lançados de cada lado.
A verdade é que Paula era uma morena bonita. Morena de verdade, africana, nascida em Luanda. Tinha grandes cabelos cacheados que chegavam ao ombro. E era incrivelmente culta para uma menina daquela idade. A mesma idade de Alex por sinal. Ele ao menos reconhecia nela uma rival a altura. Mas tinha certeza que iria esmagá-la.
Certa vez, ao perder uma "disputa de poder" para se definir qual a brincadeira da tarde, ele se sentiu o último dos homens, mortalmente ferido e apelou. Disse que estava rodeado de idiotas, molóides, que seguiam aquela bruxa. Ela respondeu com a calma gélida típica dela, que quando o adversário ataca fisicamente corrobora tão somente a sua pobreza de alma. Tais palavras despertaram nele uma cólera profunda que resultou nestas palavras ditas com desdém e escarninho:
— Humm! Miséria da alma. Todos os gnomos e doentes do corpo apelam para alma. Para o "espírito" quando em verdade tentam tão somente esquecer sua própria feiúra. Você se vangloria de sua "alma", pois sabes muito bem que tens face de bruxa. Sei que muita vez que te olhas no espelho tens ânsias de quebrá-lo ao contemplar este teu vil e dantesco semblante. Agora nega, nega que te odeias, que desprezas as tuas formas. Que busca na cultura a fuga para tua cara horrorosa? Nega?
Tais palavras foram ditas com tamanha força e desdém que pela primeira vez Paula fraquejou diante de seu "adversário". Faltarem-lhe palavras. Não conteve o choro. E ocorreu o inusitado, ela fugiu. Todos que assistiram a cena reprovavam Alex, mas não ousavam abrir a boca, apenas se foram deixando-o só. Temiam sua língua ferina. Ele sorria triunfante até olhar em volta e finalmente notar que estava só, cerrou a face e ficou a refletir se não fora duro demais com a menina. Ele sabia muito bem como ferir uma pessoa, ele sabia.
Depois de alguns dias de ausência. Ela reapareceu igual como antes. Só que desta vez mais altiva e exigente, mas ácida, mais feroz, principalmente para Alex. Todos os demais tremiam quando aquele casal se atracava naquele duelo de alusões, remoques, palavras duras e sem sentido para os demais. Alex acreditava nutrir verdadeiro ódio pela menina. Mas não passava um só dia sem que ele a visse.
Mais um Sábado. Mas desta vez diferente, bem distinto dos demais. Como de costume Alex fora na casa de seu amigo Alux, mas ele lá não estava. Nem ele nem ninguém. Parecia que todo mundo havia viajado naquele final de semana. Só lhe restou chamar Paula. Com certeza naquele dia se matariam. Pensou ele. Ela ao divisá-lo da janela, lançou-lhe um olhar contrariado. Mesmo assim saiu com a bola de vôlei na mão. E pela primeira vez, não portava o seu inseparável dicionário. As duas crianças brincaram com a bola até se cansarem. Já exaustos. Sentaram em silêncio um ao lado do outro. Ela se aproximou mais ainda. Ficaram muito perto. Ele sentia a coxa suada dela batendo na dele. Naquele momento sem saber por que, tremeu.
Foi ele quem rompeu o silêncio. Começou a falar da África, perguntou como ela viria a parar em Recife. Ela falou que todas estas viagens se davam em razão do trabalho do pai. Que já morara em Portugal, Espanha, Argentina e agora estava no Brasil. E que em breve, se mudaria de novo. Só não sabia para onde. Enquanto falava ela balançava as pernas e sorria muito. Ele não conseguia entender aquela cara. Aquela voz afetuosa, aquele lindo, meu deus, que belo sorriso, aquele balançar de pernas. Seu coração batia acelerado. Ele não entendia por que.
Teve a súbita vontade de pegar-lhe a mão. Suava. Mesmo nesta confusão de sensações, mesmo sem compreender, ele estava adorando aquele momento. Pegou a mão da "inimiga", no mesmo instante ele sentiu um forte tremor. O rosto sorridente da menina por um instante foi tomado de verdadeiro terror. Ambos ficaram mudos a se fitar. As mãos de ambos, entrelaçadas fortemente, trepidavam. Silêncio. Dir-se-ia que pararam de respirar. E as cabeças se aproximaram para um irresistível, fatal beijo, um beijo ardente, forte, mas estamos falando de duas crianças amigo; Portanto a expressão de toda essa erupção de sentimentos foi apenas o tocar dos lábios, um leve roçar de lábios que durou um segundo. Para logo ambos soltarem as mãos e baixarem ás frontes envergonhados da "fraqueza". O silêncio, agora angustiante imperou novamente. Foi ela desta vez que o rompeu:
— Alex, já notou que somos iguais? Já percebeu como agimos, vivemos e falamos da mesma forma, temos a mesma cultura. Temos o mesmo espírito indômito, a mesma sagacidade e acidez nos debates, semelhança no trato com as pessoas, até mesmo no se vestir? Temos também as mesmas fraquezas, provavelmente os mesmos medos e anseios. Alex somos...
— Almas gêmeas? De forma alguma, com certeza eu sou melhor...
Ela o interrompeu falando:
—Alex, você sabe muito bem que isso tudo é uma bobagem. Que no fundo mais admiramos uma ao outro do que qualquer outra coisa. Que fingimos nos odiar porque temos medo de nos entregar. Reconhecer que somos frágeis diante do outro. Que precisamos um do outro, porque juntos nos sentimos fortes e seguros.
Aquelas palavras saídas placidamente da boca de Paula deixaram Alex atordoado. Mas ele não se renderia. Não. Com certeza ela estava tentando manipulá-lo para depois zombar dele. Começou a soltar farpas. Tantas que o semblante de Paula outrora plácido começou a se mostrar perturbado até que ela pronunciou estas palavras:
— Não. Na verdade na forma errada de se expressar você tem razão. Nós nunca iremos dar certo mesmo. Nunca. Justamente por que temos este orgulho idiota que se sobrepõe a tudo. Mesmo a este sentimento puro que nutrimos um pelo outro e você se recusa a admitir. Este orgulho vem do medo. Esta máscara de intelectualóide não serve para esconder nossa suposta feiúra, e sim para no esconder, nos proteger do amor, de um dia ter que sentir a necessidade e ter outra pessoa ao nosso lado, e perdê-la. Somos parecidos demais e tão inteligentes, mas tão burros que romperíamos na primeira briga, no primeiro arrufo. E nenhum dos dois cederia. Jamais seremos mais do que "amigos" justamente porque somos parecidos demais.
Todas estas palavras foram ditas com uma profunda melancolia que o menino interpretava como o mais puro fingimento. Estava acabrunhado nosso menino. Quase, quase que caía na pérfida armadilha da menina, quase. Mas não era bobo.
Como vingança travou uma verdadeira guerra contra a Paula. Dentre outras ações conseguiu que todos os amigos dela a abandonassem envenenando-os contra ela. Ela merecia. Como pode uma menina querer brincar assim com os sentimentos de alguém. Graças a Deus que ele não sentia nada por ela. Se sentisse hein? Seria mais um bobo da corte.
Certa noite ficara muito confuso ao vê-la chorar sozinha num canto. Sua melhor amiga, a Patrícia, foi ter com ele. Pediu muito para que ele fizesse as pazes com a Paula. Ele se recusava. Dizia que ela era uma pérfida, uma louca. A outra negava, dizia que os dois poderiam fazer grandes coisas juntos se ele fosse um pouco inteligente. De nada adiantou. Mesmo ficando um pouco em dúvida quando viu sua "inimiga" aos prantos. Ele não cedeu.
Dias depois ele soube que ela se mudaria para Aracajú. Sem saber por que ele sentiu uma facada no peito. Um desânimo tomou conta dele. Não sabia por que, mas a partir do momento que tomou ciência da partida da menina ele estava mal. Muito mal mesmo. Ela se foi. Ele ainda estava sem compreender porque estava cada vez mais difícil dormir. Adoecera. Ficava vagando só. Não conseguia entender a origem de seu mal. Tudo durou uma semana. Até que Alux quem deu o diagnóstico óbvio: Você está assim porque sente falta da Paula. Ele sentiu um choque. Mas viu a verdade nas palavras do amigo. Duras verdades. Ele gostava de Paula, nunca reconhecera. E tudo que vivera com ela passou pela sua cabeça. Foi quando percebeu pasmo que ela também gostava dele.
Criou coragem e escreveu uma longa carta onde abriu seu coração. Ela respondeu da mesma forma. Foram mais de 50 cartas durante um ano. Inúmeras horas de telefone. Até que pouco antes dela vir ao Recife para visita, como não poderia deixar de ser eles brigaram por uma coisinha qualquer. E nenhum dos dois cedeu.
Quando ambos finalmente se encontraram por acaso houve apenas um olhar, um triste olhar e o silêncio, o terrível e odioso silêncio. E uma eternidade para curar as feridas e recordar do sonho.
A distancia não é medida pelos quilômetros dos infindáveis desertos, nem pela grande distancia que se terá que percorrer para atravessar os grandes oceanos, a verdadeira distância é forjada por nossos espíritos que conseguem que, mesmo ao lado outro dois seres sintam-se tão distantes como se o profundo abismo da morte os separassem.

Adriano Cabral

6 comentários:

  1. Acho que é a primeira vez que eu sou o primeiro a comentar um texto meu. rs
    Mas sabe, ao relê-lo penso que ninguém realmente deve ser "condenado" a encontrar o amor de sua vida aos 13 anos de idade e para "piorar" perde-lo por falta de maturidade.
    Mas é curioso, ando ouvindo tantas histórias de amigos e conhecidos e a maioria lamenta por amores perdidos quando eram jovens. No entanto, quando estamos em tenra idade, repetem como MANTRA que temos todo futuro pela frente para experimentarmos e vivermos novos mundos. O problema é que esquecem de nos avisar que determinados eventos afetivos não costumam se repetir. E não raro, se passa anos só para concluir que as experiências não acrescentaram em nada e a única coisa que valia a pena foi deixada para trás.
    Mas enfim, cada um escreve sua própria história.

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  2. Achei interessante a historia... mas um pouco exagerada na idade... ñ acho bonitinho crianças se gostaram como adultos.. acho que sofrer por amo mtu cedo é perder a infancia... gostei da historia... mas acho que eles deviam ser um pouco mais velhos.. hehe

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  3. O "pior" ou melhor é que essa história é 99% real. E seu comentário me deixou pensando...será que é mais "Maléfico" uma relação na juventude assim ou será que é mais pernicioso o que ocorre quase sempre nessa idade até a faixa dos 25, onde jovens ficam se agarrando sem paixão, sem amor, só no "automático" sem nem mesmo pensar nem saber porque, sem nem mesmo ter prazer nisso, e pior se coisificando e tornando-se cínicos cedo demais? E ainda acham que isso é curtir a vida e viver?
    Talvez alguns "jovens adultos" como esse casal prefiram levar mais a sério a si mesmo e seus sentimentos. Pena que eram, principalmente o rapaz, muito tolo para saber quando venceu e como preservar sua vitória.

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  4. Quantos de nós já agrediu alguém quando na verdade queria acarinhar, afagar, acariciar...?
    Acredito que algum trecho (ou por completo) dessa história faça parte da história de vida de muitos.
    Os seus textos tem sempre o poder de me remeter a algum momento e/ou sentimentos que estavam esquecidos.
    Obrigada por me proporcionar a leitura de belos textos. Abraços.

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  5. Já passei por situações semelhantes, e acho que boa parte das pessoas também...
    Concordo com a Laís, você tem o "Doon" de expressar em palavras o que muitas vezes não conseguimos falar. Continue assim, sempre melhor a cada texto.

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  6. Os seus textos sao otimos, muito lindo o seu texto,pena q passam por sofrimento em alguns casos.....Acho q na realidade devemos aproveitar o momento, o aqui,HOJE!!!

    Pq a vida passa tao rapido

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