O CAMPEÃO
Parecia ser uma dia de festa em Juçaral. Todos estavam ansiosos para inaugurar os novos trajes domingueiros. Aspázia passara a manhã toda se emperiquitando em frente ao espelho. Dona Nena usaria o mesmo vestido da formatura de sua filha na faculdade de Vitória enquanto os homens saíam com mangas de camisa e, uns poucos, com ternos surrados. O prefeito declarara feriado municipal, trouxe até a banda de música da cidade de Pombos. Queria a cerimônia com todos os requintes. Só foi difícil dissuadi-lo de montar um palanque para os discursos, quase o fez, mas o padre Roger tirou tal idéia da cabeça do engenhoso prefeito Joel. Todos os candidatos a candidatos se preparavam para o evento.
Neco acordara cedo a contra gosto. Não conseguia entender porque de tanta euforia. Estava realmente com vontade de prolongar o precioso sono.
Ao ver o filho sem a mínima vontade de levantar da cama, sua mãe gritou, eita menino sem coração, o professor se vai e ele nem tá aí. Oras, exclamava Neco interiormente, pois temia a fúria materna, que grandissíma porcaria foi a partida do professor... O que renderia para ele seus ensinamentos? Aonde pararia? Se ao menos ele fosse professor de verdade, de leitura, talvez valesse um pouquinho daquele alvoroço todo... mas não... um professor de volei naquele oco de mundo? Só ía para os treinos porque mainha ameaçava com uma surra. Nestes pensamentos levantou-se desolado, vestiu sua melhor roupa domingueira sem nenhum entusiasmo e seguiu com toda família para cerimônia. No caminho topou com o odioso e asqueroso mendigo Gambá.
Dir-se-ia que toda Juçaral resolvera se ajuntar no mesmo lugar. Até gente ilustre de Recife como dona Suzana Rêgo Brito e seu filho estavam lá marcando presença. O padre alheio a tudo isso falava com voz monótona os textos bíblicos. Depois dele, o prefeito fez seu discurso, pomposo e longo que quase adormeceu com a mesma veemência fatal os vivos presentes. Depois do prefeito se sucederam muitos oradores, cada qual preocupado em mostrar seus dons de oratória ou talentos "artísticos" tudo isso para enaltecer o morto e porque não, fazer uma breve auto propaganda. Lá se ía quase duas horas de epitáfios "emocionados". E haja poesia ruim para tornar mais ainda lúgubre aquele evento. Choro mesmo vinha da pobre viúva e de suas duas filhas. Aílton, o professor, tinha sérias dúvidas se o pesar da viúva era por causa da morte do marido ou pelo suplício dos intermináveis discursos.
Se a morte não comovia a turba de oradores outra razão lhes traziam grande desgosto naquele momento, a razão era que mesmo com a imensa quantidade de "ouvintes" não havia palmas, fosse boa ou má a oração. No final das contas se tratava de um funeral, e pedir aplausos já parecia além da conta, não obstante o poeta Agenor achar tal fato lamentável. Mas há sempre os recalcitrantes, Tony, cabo eleitoral do eterno prefeito Joel, aplaudiu sozinho durante trinta espetaculares segundos o patrão.
Finda, para alívio geral, a última palavra do último orador, o coveiro começou a jogar areia no ataúde. Agora era o poderoso som da areia a bater no caixão que dominava aquele recinto, foi aí que até o prefeito se recordou que se tratava de um funeral. Aquele som aterrorizante cessou ao surgir um forte alarido. Era o Gambá, que ébrio como sempre, teimava em se aproximar da viúva. Dizia que também queria falar. Obviamente, ninguém iria permitir que um alcoólatra famoso pelas suas estultices falasse num funeral de pessoa tão ilustre e bem quista como a do Professor Manoel da Silva. O tumulto ía crescendo pois o biltre do bebum não desistia de seu intento. Esperneava, empurrava, mas tinha que falar, tinha que mostrar para povo. A família do morto vendo o pobre mendigo a chorar implorando pelo direito a palavra, acabou se compadecendo, para indignação geral dos principais da cidade. Ninguém sabe se foi o impacto da morte sobre a viúva, ou a vingança que a mesma imaginaria ter contra os miseráveis principais da cidade, que impiedosamente castigaram ouvidos dela e de todos os presentes com toda aquela hipocrisia oratória, o fato é que dona Maria ordenou para que soltassem o Gambá, e que o deixassem falar. Para espanto geral da cidade.
O Gambá já livre, com todo o fedor que Deus lhe deu, se aproximou a beira da campa e com a voz embargada pela emoção falou:
— Hoje Juçaral dever chorar, hoje todos nós devemos chorar, cada pé de banana, cada gomo de cana, cada capim desta terra, cada sabiá deve estar lamentando a morte do nosso amado Manoel Da Silva. Quem ele foi? Tudo. Quem eu sou? Nada. Eu sou um bêbado inútil, um desgraçado sem ninguém, que vive pedindo um centavo pelo amor de deus para encher meu rabo de cana e depois arranjar brigas por qualquer coisa. Eu sou um estorvo para o mundo; Uma coisa qualquer que no dia que desaparecer da terra será esquecido na mesma hora em que se fechar sobre mim a campa. Mas eu digo a vocês... houve um dia. Houve um, ao menos um, que eu fui alguém, que eu fui amado que fui admirado por todos desta cidade... houve um dia em que fui carregado nos braços do povo, que fizeram festas e dança em meu nome; um dia em que todas as principais raparigas da sociedade desejaram me ter como par no baile do Sábado. E este único momento glorioso que tive em minha vida devo ao meu amado Professor Manoel Da Silva. Ele sim, que trinta anos atrás foi meu técnico e conquistou campeonato pernambucano de vôlei pela seleção de Juçaral. Título que levou o nome desta terra a ser respeitada por um momento em todo Pernambuco, por um momento... E fui eu quem ganhou naquele mesmo campeonato a medalha de melhor jogador. Por isso fui tão festejado nesta cidade... e todo aquele curto mas belíssimo momento da minha vida devo ao Professor Manoel Da Silva. Que chegou aqui neste fim do mundo. E tentou através do esporte, dá uma opção de vida a esta criançada, a educar esse povo sem vez, a dar uma luz a quem só pode ser cortador de cana ou marginal. Agora vocês devem perguntar, porque falo tudo isso, será que quero com isso retomar meu esquecido dia de glória? Não, só queria que estes jovens que aqui estão, que esta criançada olhem para mim, olhem bem mesmo e vejam como se pode desperdiçar uma vida por causa da burrice de se entregar ao álcool e a vadiagem, a fraqueza. E vejam que merda é desperdiçar as oportunidades tão raras que a vida dá para gente. Vejam como é triste conviver com um homem tão bom como este que aqui está morto e não aproveitar esta dádiva o máximo possível. Pois assim como só temos uma vida, muitas vezes só temos uma chance.
Antes mesmo de terminar, toda terra em volta ao cemitério de juçaral ficou úmida, mas não choveu.... todos ficaram em silêncio. Todos na cidade se sentiam agora tão órfãos de tudo como Gambá, aquele que só teve um único momento, um. Neco também chorava, e pela primeira vez sentiu a falta que faria o professor.
Depois desse dia Gambá desapareceu de Juçaral, uns dizem que se suicidou, outros que voltou a tomar suas canas pro lado de Amarají. Neco a partir deste dia prometeu a si mesmo que não seria um cortador de cana, seria como seu Manoel Da Silva, um Campeão.
by Adriano Cabral
"Pois assim como só temos uma vida, muitas vezes só temos uma chance."--> Gostei disso. Mais nada a acrescentar.=)
ResponderExcluirP.S.: Não sei por que, mas sinto que simpatizaria com esse filho da Suzana Rêgo Brito, rs.