Jessé tinha saído da igreja definitivamente impressionado. Toda aquela história do retorno de alguém que jamais poderia voltar lhe pertubou. Era um misto de medo, ânsia, terror, espanto e felicidade. Afinal, era o milagre supremo, só menos importante que a volta do nosso Senhor. Era o que repetia o pastor Ezequiel em altos brados seguidos de améns e glórias. Indagada pelo garoto, a mãe de Jessé disse que o poder da oração é infinito, pois ela emana do próprio Deus onipotente. Aos onze anos, órfão de pai, Jessé vivia agora em uma cidade estranha, sem parentes e amigos, a mãe aceitou logo a promoção para mudar de ares e esquecer a dor, no entanto, mesmo nessa solidão à dois, pela primeira vez após a morte de seu pai ele não tinha mais medo do fim, pois agora ele sabia o poder da prece.
Desde que começou a viver sozinho com sua mãe Jessé costumava dormir com ela na enorme cama de casal, sempre enlaçados. Naquela segunda-feira ele acordou num salto, ainda sentia muito frio, não conseguia entender porque daquela sensação logo no momento que a cidade estava tão quente. Olhou o relógio e percebeu que faltavam apenas quinze minutos para chegada do transporte escolar. Aluno dileto e aplicado, comeu e se vestiiu velozmente, notou que sua mãe ainda estava inerte na cama, ela tinha direito, afinal era seu primeiro dia de férias. Deu-lhe um leve beijo na tez muito pálida e saíu. Ao retonrar da escola entrou na casa animado chamando pela mãe. Silêncio. Procurou em quase todos os cômodos da casa e nada. Deve ter saído para comprar algo, refletiu. A mãe lhe ensinara a "se virar", afinal, agora eram apenas eles dois. Pegou uma pizza e esquentou no microondas. Vou comer na cama vendo Tv, afinal a mamãe não está aqui. Entrou no quarto ainda escuro devido as janelas e cortinas fechadas, ligou a tv e sentou na cama, de súbita uma corrente elétrica percorreu-lhe todo corpo, ele saltou assustado derrubando toda comida no chão, ligou a lâmpada e para sua surpresa percebeu que sua mãe ainda estava lá. Sacudiu-a não obtendo nenhuma resposta, sua mão sentiu o mesma sensação gélida que tivera toda noite. Saculejou deseperdamente sua mãe que mais parecia feita de pedra, pôs o ouvido em suas narinas, no coração: nada.
No dia seguinte foi pra escola como todos os dias. Quem o conhecesse, no máximo perceberia que Jessé estava mais do que nunca concentrado em algo, não raro olhando para o céu, noutras vezes com os olhos cerrados, em silêncio, enquanto seus lábios repetiam como uma metralhadora frases inaudíveis. Ao chegar em casa não procurou sua mãe, imaginou muito bem onde ela estaria. Foi ver Tv na sala, fez as tarefas, brincou com as crianças do prédio e à noite deitou-se como sempre fazia. Não dormiu logo, orou durante horas até não resistir ao sono finito. Ao acordar estava ensopado de algo nauseabundo, esverdeado e vermelho. Não se desesperou, isso só reforçou sua necessidade de proferir com mais fervor aquelas palavras silenciosas que desde o dia anterior repetia. No banheiro, olhou-se no espelho, estava sujo e com olheiras, lembrou do rosto de sua mãe, não resistiu, chorou. Pouco tempo depois estava na escola fazendo tudo que se exigiria de uma criança de onze anos.
Ao retornar da escola e repetir a rotina do dia anterior finalmente entrou no quarto e o odor era insuportável, mas ele tinha fé, não poderia deixá-la só. A cama estava encharcada de líquidos e sua mãe parecia três vezes mais obesa, aquela visão grotesca o fez titubear por um instante. Mas lembrou das palavras da própria mãe, e entre lágrimas recomeçou a orar até adormecer exausto.
Nos dois dias que se seguiram Jessé não foi à escola. Ligaram várias vezes para sua residência e ninguém atendia. Preocupada sobremaneira com o novo aluno predileto, Jéssica foi com o namorado fazer uma vistinha "social" ao garoto já que o seu amado morava no mesmo prédio do menino. Ao tocar a campainha ninguém atendeu a porta, não obstante várias luzes do apartamento estarem acesas. O namorado da professora de matemática percebeu que a porta da frente estava entreaberta. Resolveram entrar chamando pelo nome do garoto e da mãe alternadamente, silêncio. Enquanto caminhavam pelo extensa sala começaram a distinguir uma voz de criança, rouca, que repetia palavras àquela distância sem sentido, seguiram à voz até uma porta, abriram e encontraram Jessé banhado de sangue, urina e fezes abraçado a mãe morta em posição fetal, mãos juntas implorando à Deus...
By- Adriano Cabral
Uma palavra pra esse texto: ternura. =)
ResponderExcluir[Apesar do certo tom de fantástico. Quando se confronta a fé com a fisiologia, geralmente a última sai ganhando, junto com Darwin...]
Fiquei chocada e ao mesmo tempo encantada. Esta pulando de blog em blog e vi o despretensioso nome so pensando...
ResponderExcluirE ao ler esse texto me puz efetivamente a pensar. Perfeito e triste.
Eu ja tinha lido amor!
ResponderExcluirComovente...quase choro...
=~~
Suee
Amigo Adriano, sem palavras! O que posso dizer é: não pare, não pare nunca... essa tua missão é única! A arte de pensar e refletir pensamentos.
ResponderExcluirÉ triste saber como as igrejas usam a fé de pessoas simples e se tornam um instrumento de alienação. Manipulam o saber interno, a intuição humana, a capacidade de reflexão na busca de respostas dentro de si mesmo. E com isso, humanos acabam se valendo de palavras sedutoras revestidas de uma esperança mórbida, sofrida, na torturante espera de um futuro milagre!
O texto em tela foi inspirado em fatos reais, curiosamente hoje foi noticiado um caso bem semelhante.http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/internacional/2011/11/04/garotinha-de-tres-anos-passa-dois-dias-comendo-sobras-da-geladeira-apos-morte-da-mae.jhtm
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