Aílton estava sentado num banco de praça. Era alta noite, ou alta madrugada. Uma hora onde quase todos dormiam, exceto os bêbados, boêmios e os poucos trabalhadores noturnos. A paisagem era belíssima, mas parecia que os olhos do rapaz de belo nada via. Sua face nem de tristeza era. Era o total desalento. Uma espécie de cansaço. Tão somente a falta de razão para viver era o que exprimia aquele olhar. Ele pegou dentro da bolsa de couro um pacote de biscoito recheado Pilar, abriu, e, ao sentir o aroma achocolatado, veio uma invencível necessidade de chorar.
Quão pequeno é o ser humano. Contudo, os grandes autores só falam de grandiosos homens e grandes feitos. Mesmo quando são aparentemente fracos, eles têm consigo fatos maravilhosos ou ações espetaculares atrás de si, ou ao menos, uma certa magia. No entanto, o ser humano no mundo real é tão pequeno tão enraizado no soturno mundo do anonimato. E é até cômico como pequenas coisas sem poesia e sem graça, evocam nos homens pequenos as lembranças do que para ele foram grandes recordações, que se referiam a momentos cruciais de suas vidas. Um par de meias, uma escova de dente, uma mera bijuteria, uma estação de metrô, uma música popular, uma letra, uma corujinha, um pacote de biscoito recheado. Quaisquer dessas coisas são comuns, entretanto pode representar um mundo para uma pessoa, uma porta para magia ou para o pesadelo. Mas que só uma ou duas pessoas são capazes de ver e entender.
E ao sentir aquele aroma tão comum para tantos, mas tão especial para ele, sua mente vôo através do nada e conseguiu o impossível, voltou no tempo...
E lá estava ele irritado como sempre. Um reclamão. Também, pudera, chegar aos vinte anos e nunca ter tido nenhum contato com mulher, nem um beijo, nem um pobre e miserável beijo. Chances, já tivera, mas não beijaria qualquer uma. Tinha que ser o seu grande amor. Entretanto, como nenhuma mulher parecia disposta a passar pela fase de testes até chegar a ter a "honra" de dar-lhe o primeiro beijo, permanecia sozinho. Mais irritado ainda estava ele naquele dia, pois o homem da lanchonete da faculdade dissera que não havia biscoito recheado São Luiz, o seu predileto. Mas como ele estava com desejo imenso, incontrolável de comer biscoito, ele se contentou com o sem graça do Pilar.
Ao chegar ao pátio da faculdade, sentou num canto sozinho para comer em paz. Antes mesmo de pôr o primeiro biscoito na boca, sentiu um perfume que o paralisou para logo seguida sentir que alguém estava ao seu lado. Uma voz suave fez um pedido sem cerimônias acompanhado de um lindo sorriso:
— Me dá um biscoito!
Disse a desconhecida estendendo a mão. Aílton não sabia o que dizer nem o que fazer. Seu primeiro impulso fora enxotá-la. Oras, jamais havia visto aquela criatura inoportuna e sem vergonha. Mas como recusar aquele pedido, aquele olhar? Cedeu. Ela recebeu fazendo muitos agradecimentos, dizendo que amava aquele biscoito Pilar, ninguém gostava, né? Mas ela amava, afinal era um produto da terra. Enquanto agradecia, olhou nosso rapaz bem na alma e de repente estacou. Ele ficou espantado de como aquela menina, era tão bela e ao mesmo tempo tão estranha. Ficou paralisado sob o olhar perscrutador daquela criatura que invadiu a sua vida sem aviso e já o dominava naquele instante.
— Lindo os seus olhos sabia? Tanto sentimento... Seja lá quem for a sua namorada deve ser uma garota de sorte. Que lindo par de olhos castanhos estes os seus. Tanta ternura...
E os olhos dela se enterneceram. Foi quando neste momento ele percebera que estava diante de duas lindas e brilhantes luzes azuis. Tão azuis que obscurecia o próprio céu com seu azul de infinita beleza. Estava completamente perdido naquele olhar. Já não tinha mais noção do que fazia. Por vários momentos pensou que ela estava tentando fazê-lo de bobo. Que fizesse, pensou ele, aceitava, desta vez, pela primeira e única vez na sua vida aceitaria ser um bobo. Valia tudo, para contemplar, tão perto, nem que tão somente naquele instante único, aquele olhar.
— Sabia que você é lindo!
Ao escutar isso, nosso tímido rapaz ficou literalmente de boca aberta. Não podia acreditar no que estava vendo e escutando. Só podia mesmo ser um sonho. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, ela puxou-o para si e beijou-o. Tão perdido estava Aílton que nem conseguia responder ao beijo a princípio. Afinal era o seu primeiro beijo. Um beijo que ele esperava ser executado com todo o planejamento e cautela. Agora não queria deixar aquele beijo inesperado. Tomando ar... Enquanto ela perguntou tranqüila:
— Você tem namorada?
Mas o pobre rapaz ainda estava tomando ar, quando ele estava já reunindo fôlego para responder, ela o agarrou de novo e antes de beijá-lo novamente disse:
— Ah! Não importa.
E partir daquele dia eles se encontravam todos os dias. Passavam todas as tardes após a faculdade na praça 13 de maio, aquela mesma perto da Faculdade de Direito do Recife. Ambos estudavam lá. Midiam tinha dezoito anos de pura energia e alegria. Ficavam horas e horas atracados sob a grama, deitados, se sugando no meio parque...
Ás vezes emendavam o dia e a noite. Caminhando como loucos, ainda vestidos com as roupas graves da faculdade, na beira da praia de Boa Viagem. Cada vez que se despediam era uma dor, uma vontade de chorar. Parecia que era a última vez. Uma verdadeira despedida. Ao chegarem em suas respectivas casas, se telefonavam e ficavam a conversar até o sono chegar.
Com sete dias de namoro. Midiam o levou para um porão desconhecido pela a maioria dos estudantes da faculdade onde ficava os velhos móveis do ilustre orador baiano Rui Barbosa. E lá ela pediu para que Aílton a possuísse. Devo-lhes confessar que ele ficou pasmo. Duvidando até da virtude dela. Mas a vontade era maior que a moral. E ele a despiu, deitou-a em cima do velho birô de Rui Barbosa e adentrou em sua Midiam. Para o sua surpresa ainda era imaculada. E encontrou o céu. Um.
Desde então se amavam todos os dias nos lugares mais inusitados. Como ser mais feliz? Perguntava para si mesmo. Midiam tinha todos os requisitos que um dia sonhara. Cheia de energia, inteligente, poética, livre, livre, livre e linda, linda até demais pro seu gosto.
Três meses se passaram. E ela apareceu de repente com um par de anéis. Ela declarou que era sua noiva. E acrescentou que ele fatalmente seria seu marido. Aílton vivia embriagado com tanta ventura. Parar para pensar? Porque, se era feliz?
Certo dia ele perguntou:
— De onde vieste? De que céu fugiste minha anja? Que bem fiz eu para te ter? Será que de repente não irás embora tal qual chegaste?
Ela respondeu plácida:
— O anjo aqui é você meu amor. A sortuda aqui sou eu. Eu quem te agradeço por teres deixado eu entrar na tua vida, e tudo que faço só tem um motivo, te amo e é esse amor que me move e me faz realizar essas doces "loucuras". Quanto ao fato de ir embora, te juro, que só te deixarei quando a morte me levar. E te peço, que quando isto acontecer, não sofras. Apenas no dia em que a saudade e a dor forem insuportáveis, venha para esta praça na madrugada, pegue um pacote de biscoitos e coma em nosso tributo, e se uma lágrima irrequieta quiser ferir os teus olhos, contemplas a grama, estas árvores e este céu, e lembra das tardes que passamos aqui, de tanta felicidade e amor. E eu tenho certeza que a treva da morte se fará luz com esta lembrança, pois neste momento, eu estarei aqui contigo, pegando na tua mão, a comer estes biscoitos de chocolates. E não haverão mais lágrimas apenas a certeza da felicidade eterna e do reencontro.
Estas últimas palavras à menina proferiu sempre com um sorriso, mas ao mesmo tempo com a voz embargada de dor. Ele implorou para que ela não falasse assim. Pois ele sabia que a terrível sombra da morte teria que muito esperar até tomá-la deste mundo. Que ela ainda era tão jovem.
Ao completar exatamente quatro meses de namoro. Aílton ainda estava em sono profundo quando com um salto acordou ao escutar o telefone que gritava desvairadamente, correu para sala com o intuito de atendê-lo. Do outro lado da linha ele escutou gritos lancinantes. Gritos que comoveriam até as frias rochas marinhas. Um clamor de dor insuportável. Era sua Midiam. Clamava o socorro de seu amado. Aílton me ajuda, eu não quero morrer, não quero morrer, Ai! Não me deixa, não me deixa!
Todo este horror durou menos de um minuto, de repente o telefone emudeceu. Ele correu desesperado para casa de sua amada. Era tarde demais. Naquele momento em que falava com Aílton, Midiam deixou o mundo dos vivos. Morreu de aneurisma cerebral. Ninguém da família conseguia entender. Jamais a Mi ficava doente. Nunca imaginariam isso.
Nada fazia sentido. E quem disse que á morte faz sentido? Alguns dias mais tarde após o sepultamento, os pais de Midiam entregaram um envelope pardo para Ailton. Eram várias cartas que Midiam escrevera para ele, como se ela já antevisse seu destino. Eram palavras de consolo e de onde ela falava de seu grande amor por ele. E nessas cartas, foi que ele descobriu que ela já o conhecia há mais de quatro anos. Que ela estudara todo colegial no mesmo colégio que ele e o observava desde então, que na hora do recreio ia furtivamente para sala dele e lá lia os cadernos de Aílton, neles estava uma espécie de diário improvisado, onde ele escrevia suas poesias, falava das suas dores e seus sonhos, falava de sua solidão. De como o amou muito antes de falar com ele, e senti-lo. E as cartas póstumas revelavam também de como ela detestava biscoitos Pilar...
Aílton estava lá sentado na madrugada fria, a comer biscoitos. Após mais de um ano da morte de Midiam era o mesmo ritual, sempre que podia estava ali. Buscando naquela solidão a presença dela, e nada. Todo aquele ambiente bucólico lhe era funesto. Todas as folhas estavam mortas, cada estrela no céu era uma lágrima, o vento levava tudo que era bom com sua música de lamento.
E quando ele contemplou o nada já sem esperanças, a lembrança veio viva e cheia de dor. E não foi possível acalmar as lágrimas irrequietas que banharam a praça como um rio de águas salgadas. Atordoado e desesperado, ele sentiu de novo aquele perfume que um dia mudou sua vida. Olhou para o seu lado, e lá estava ela como prometido, com o mesmo sorriso. Ele queria dizer-lhe tanta coisa, perguntar-lhe tanta coisa... Mas antes dele proferir qualquer palavra ela perguntou:
— Me dá um biscoito.