Havia mais ou menos um ano que estava formado em medicina pela Universidade Estadual da minha cidade, não obstante esta fazendo residência médica em Gastroentorologia, a falta de grana e experiência me "inspiravam" a fazer plantões nas horas vagas. Não tive muita sorte no início, pois fui "dispensado" de um hospital porque não queria fazer plantões de "200" horas sem nenhum "custo" extra para o patrão. Fui em seguida "despedido" de um hospital particular vinculado ao Sistema Público de Saúde por me recusar a "simular" internações para gerar renda extra (Vocês viram na TV que isso pode até dar cadeia). Finalmente acabei me dando bem num hospital localizado numa cidade do interior por indicação de meu amigo Rodolfo. Ao contrário dos hospitais gerais das capitais ou de seriados de tevê, os plantões em hospital de interior é um tédio só, em regra passamos a noite dormindo. Mas não foi assim neste dia que estávamos apenas eu e Rodolfo na preguiçosa noite de 31 de dezembro de algum ano que já não lembro mais. Estava eu sonhando com alguma enfermeira mais que gata quando ouço o som da porta bater. Era a enfermeira, mais que tenebrosa, seus rosto era tão perfeito que ela poderia estrelar um filme de terror dispensando os efeitos de maquiagem.
- Doutor Rocha!
-Que foi droga! Não vê que estou dormindo!
-Apareceu uma mulher nervosa dizendo que o filho ta morrendo...
Filho morrendo, lá vai eu, enquanto o urso do Rodolfo continuava a ressonar como uma chaminé de trem. Quando estou prestes a entrar na sala do consultório um foguete em forma de criança passa por mim, ignoro, entro e sentada na cadeira há uma mulher de olhar docemente bovino.
- Senhora, qual o problema do seu filho!
-Ele tá mau doutor, muito mal, estou desesperada. Enquanto falava ás lágrimas escorriam de sua face cheia de rugas. Olhei derredor procurando o menino, imaginei que o mesmo estaria provavelmente agonizando em algum leito da enfermaria, para ter certeza indaguei onde estava a pobre criança. Como geralmente quando o diabo vem manda o secretário, no mesmo instante que pensei na pergunta a resposta entrou no consultório derrubando tudo que estava na minha escrivaninha, saltitante e feliz estava lá o mesmo foguetinho que encontrei antes de adentrar a porta. Um pirralho loiro, cabelos em pé, suor escorrendo, e sorriso triunfante.
-Este é seu filho que tá morrendo?
-Sim doutor ele melhorou um pouquinho né? Mas precisa de remédio.
Uma das coisas que qualquer médico plantonista sabe é que todos os pacientes atendidos precisam de um remédio, não importa se estão doentes ou não. Lembrei do sonho com a bela enfermeira, lembrei que ele foi interrompido por causa daquele diabinho e da mãe boboca, respirei fundo, afinal, eu era o médico né?
- Tome essas amostras de vitamina C, dê muito líquido e repouso.
Retornei a minha sala de repouso, a cama ainda estava lá, quente, convidativa, insinuante como toda boa amante deve ser, entreguei-me aos seus braços e quando embalado por Morfeus estava de novo deleitando-me nos suaves sonhos, acordo com a maldita enfermeira de novo. Não pude suportar o impulso e gritei:
-Que foi agora mulher!? Com a voz trêmula ela disse-me que havia uma senhora idosa a ser atendida, parecia estar sofrendo de grande mal estar. Mandei-a chamar o Rodolfo, logo ela respondeu que o Dr. Ribeiro parece que está sedado, já fazia quase dez minutos que tentava acordá-lo, então, só restava eu mesmo. Fui bufando de raiva para o consultório, entrei e deparei-me com uma velha índia, ao sentar eu sorri com toda boa vontade de uma modelo internacional (aquele tipo de bicho que vive passando fome e sorri como uma caveira sabe?).
- Boa noite, o que a senhora esta sentindo? A resposta veio no momento em que ela abriu a boca, um hálito fétido de esgoto de quem ainda não conheceu a idade da escovação de dentes estava misturado com um nauseabundo odor de cachaça.
-São meus nerlvos doutor, eles não me deixam em paz. Me passe um remédio pra acalmar meus nerlvos, porque meu dinheiro já acabou.
-Minha senhora, com todo respeito, seu problema não são os nervos, e sim essa cana que a senhora enfia goela abaixo. Tome esse remédio para atenuar a ressaca e apenas tente beber menos.
Logo em seguida fui bufando de raiva para o repouso, adverti a enfermeira que só chamasse-nos se realmente houve uma urgência. Ela parecia sorrir. Dormi um sono sem sonhos que foi interrompido por Rodolfo me sacudindo, alegando que era "minha vez de atender" e que se tratava de um paciente com problemas hepáticos. Mandei-o para lugares inapropriados e voltei ao mundo do sono sem sonhos. Pouco tempo depois lá está novamente a maldita enfermeira com cara de tacho na minha frente.
-Que foi agora?
-Doutor, o paciente com problemas hepáticos morreu. Ao ouvir isso tremi de raiva.
-E o que eu tenho a ver com isso? Tenho lá cara de coveiro?! Morreu, pronto, nada mais se pode fazer.
A enfermeira continuou firme, e acrescentou que era verdade, mas não tinha mais ninguém no hospital além de mim, Rodolfo e seu João o zelador e havia necessidade de levar o corpo para o necrotério, pois os outros pacientes estavam incomodados na enfermaria, além de se ter que deixar um leito livre. Pensei em mandá-la se virar com seu João, mas logo lembrei que o velho parecia ter uns duzentos anos, mal conseguia com ele mesmo. Acordei Rodolfo aos tapas e fomos para enfermaria. A visão do morto não era nada bonita. Tratava-se de um homem de cerca de 1.90 que além de gordo como um elefante estava aparentado com uma baleia em razão da doença que o deixou completamente inchado. Durante alguns minutos eu e meu colega tentamos em vão rolar o inconveniente falecido do leito para maca, contudo só Hércules seria capaz de tal feito, provavelmente mais difícil que todos os doze trabalhos juntos. Já eram três e meia da madrugada, suados e com sono, não tivemos alternativa senão acordar os pacientes melhorzinhos para ajudar-nos na titânica tarefa. Conseguimos ao todo seis. Mesmo assim não conseguíamos mover o bendito, até que um dos pacientes teve a idéia genial de subir no leito e fazer uma alavanca, funcionou, mas o pé dele afundou no espaço entre o colchão e paciente e morto giraram juntos caindo, não diretamente no chão, pois Rodolfo amorteceu a queda do defunto que caiu abraçadinho com meu amigo. Por um instante, entre os gemidos do paciente e do Rodolfo acompanhado da forma descansada e tranqüila do morto, passou pela minha cabeça que se trataria de uma tenebrosa cena erótica...
Mas logo acordei desse pensamento e com a ajuda de mais quatro pacientes conseguimos finalmente por a baleia em forma humana na maca. Já eram quatro da manhã, fomos felizes, corredor adentro empurrando a maca, que fazia um rangido sinistro sofrendo deveras com o peso, em direção ao necrotério. Foi quando há menos de dois metros do destino ouviu-se um estalido e o pior aconteceu: O pé da maca quebrou. E lá gastamos quase quarenta minutos para "consertar" a maca. Chegando ao necrotério foi fácil, até porque as macas são feitas na mesma altura da pedra onde são depositados os cadáveres do hospital, logo, bastou um empurrão e o corpo foi rolando, tranqüilo. Fim.
Eu e Rodolfo retornamos para o repouso trôpegos, exalando perfume funéreo, suados, mas felizes com o deve cumprido. Tomado banho, fomos dormir, eram cinco e meia da manhã, mal dormimos, por instinto resolvi abrir os olhos. E lá estava de novo diante de mim a entediante enfermeira, ela falou monotamente que a paciente do leito 17 estava em trabalho de parto. E lá fomos eu e Rodolfo ajudar a por mais um infeliz no mundo.
Enquanto o bebê saía num turbilhão de vômitos, fezes, sangue e toda sorte de líquidos multicores tive tempo de filosofar sobre o gorducho que se fora deste mundo e do magrelinho que acabava de nascer. Depois pensei que a enfermeira dos meus sonhos ainda estaria esperando por mim quando conseguisse dormir.
E este foi apenas mais um dia de plantão médico.
By- Adriano Cabral - (Inspirados em fatos reais)