Ane era uma garota muito estranha. Desde que pôs as mãos no primeiro livro aos seis anos ela não parou mais de devorá-los. Não é por acaso que ser aprovada entre os primeiros lugares do disputadíssimo curso de medicina não foi exatamente algo muito difícil pra ela. O pai comunicou-a que iria presenteá-la com um automóvel como prêmio pela façanha, no entanto, para surpresa dele e da mãe ela declinou do presente. Alegou que adorava utilizar ônibus, seja porque sempre podia conhecer gente nova, ou ainda porque teria tempo para ler durante as viagens, coisa que jamais seria possível se dirigisse. Imagine só pai perder tanto tempo da vida só guiando um carro, quantas páginas a menos teria que perder por isso? Acrescentou que se quisesse presenteá-la com algo, aceitaria de bom grado a coleção completa da comédia humana de Balzac. Atônitos os pais se renderam a tão incomuns argumentos e comprou-se a comédia.
E qual não foi à surpresa de Ane no primeiro ano de curso ao perceber que seus colegas de academia tinham verdadeira ojeriza a leitura. Só tenho tempo de ler livros de medicina, repetia o coro. Ane só não conseguia entender onde o mesmo coro conseguia tanto tempo para festas semanais, churrascos, calouradas e festinhas a cada módulo. Mesmo com tal raciocínio em sua defesa, Ane às vezes lia os livros “proibidos” quase que furtivamente, parecia crime estar com Proust nos braços enquanto as vísceras e os ossos tomavam tanto tempo da vida dos colegas.
Ela nem sonhava que essa estranha mania de ler, pensar e refletir demais iria um dia perturbar a paz da academia, mas aconteceu. Imaginem a cena: vinte jovens vestidos com jalecos nos quais bordaram "orgulhosamente" seus nomes acompanhados de "Acadêmico de Medicina". Eles estão trancados numa sala. Essa sala é repleta de um líquido volátil e cancerígeno: formaldeído, também conhecido como formol (ou "líquido de embalsamar").
Cada um está diante de uma das vinte mesas que compõem a sala. Em cada mesa há uma peça, não nada de Shakespeare nem tampouco alguma espécie de jogo com requintes de resistência. A peça em questão que eles têm diante de si é um cadáver! Ou melhor, o que sobrou dele: são dezenas de pernas e braços, cabeças e abdomes, mãos e pés, aqui ou acolá um corpo sem olhos, outro sem orelhas. Tudo bem, sem dramas, muitos deles estava bem pior em vida. Mas voltemos ao desenho do quadro, esses corpos estão todos alfinetados e com linhas amarradas. Você poderia pensar que tratar-se-ia de alguma espécie de macumba ou vodu? Que nada! Isso é pra indicar as partes anatômicas que os jovens "têm" de saber. E não basta saber, tem-se que colocar isso no papel. É a famosa e temida prova de anatomia, onde se têm a ilusão que é possível aprender todos os ossos, veias, órgãos e sabe-se lá mais o que faz parte do corpo e gravá-los na memória até o final do curso, ou será da vida. Ah, e tem um senhor no centro da grande sala, que diz, de minuto em minuto: "Roda!". Sim, porque não adianta saber e colocar no papel, isso tem de ser feito rápido. Ah, e não adianta saber, colocar no papel e ser rápido, pois se você não fizer isso em pelo menos 70% das mesas, passará pela humilhação de ter seu nome exposto no mural principal (da universidade federal para a qual você "orgulhosamente" passou), como um comprovante de "incompetência". Ah, mas ainda tem a cereja do bolo: a sala tem janelas superiores pelas quais vemos a copa das árvores e o céu... E lá estava Ane, olhando por essas janelas, quase voando através delas, lembrando das frondosas árvores da antiga França onde provavelmente Sthendal, sentado à sombra de uma delas recriava a raça humana na ponta de uma pena. Nisso estava perdida com a ponta de um dos alfinetes nas mãos (e "desperdiçando" seu "enorme" minuto), quando abaixou a vista havia esquecido onde exatamente devolver a danado. Ouviu o pavoroso roda, enfiou o alfinete em qualquer lugar da cabeça que estava na mesa, respirou fundo e seguiu. Tudo parecia ter bom termo quando uma colega, linda, loira, rica e fútil, que provavelmente jamais havia posto os olhos num Zola, mas definitivamente observadora exclamou: "Professor, alguém tirou o alfinete no canto nessa peça!" Aí todos os 19 começaram o burburinho, o professor correu pra ajeitar, alguns colegas aproveitavam para adiantarem-se nas outras mesas para antecipar as questões, dois estava lutando com o professor quanto ao verdadeiro destino do alfinete, a loirinha começou a chorar gritando que a prova deveria ser anulada, outros conversavam sobre a escalação da Seleção Brasileira e Ane ficou aterrorizada? Que nada, ela ria, mas ria desesperadamente, dava gargalhadas mesmo! E questionava como era possível se criar uma peça tão hilária como aquela? Nelson Rodrigues não comporia nada mais cru nem tão exposto. Ah, talvez por isso o nome da sala seja "anfiteatro"! Refletiu.
Ane tirou a nota máxima, para variar. Formou-se com louvor e trabalhou no árduo e nem tão bem recompensado ofício de médico durante muito tempo. Mesmo formada, durante muitos anos ainda preferia pegar ônibus. Na profissão vivenciou toda dor, tristeza e frustração inerentes a um ofício que inclui enfermos. Trabalhou muito, mas não deixou os livros até que a ausência de visão aos oitenta e sete anos a forçou aposentar-se de ambos. Mesmo doente e sem enxergar, Ane até o último suspiro não deixou de sorrir e sempre tentava lembrar-se da singela e bela visão da copa das árvores.
by- Adriano Cabral
PS: Livremente inspirado em fatos reais descritos num e-mail de uma grande amiga a quem tenho a mais alta admiração e estima.