Há mais ou menos quatro anos, uma amiga de nome Lu (fictício) a quem eu tinha em mais alta estima perdeu o noivo num acidente automobilístico. Este texto foi minha "homenagem" a esta amiga, foi uma tentativa de pensar como ela estaria se sentind0 com o fim tão trágico e prematuro da relação.
Como é meu costume, acabei enviando este texto para alguns amigos, dentre eles, Joyce (nome fictício) não apenas leu, como mandou-me um e-mail tocante no qual relatava que sempre teve dificuldades de explicar e expressar o motivo dela estar há tanto tempo tão absorta no mundo, e o texto descrevia exatamente como ela se sentia em relação a morte do namorado que já contava mais de um ano e seria uma forma muito boa de explicar aos seus amigos e familiares como ela via e sentia o mundo desde então.
Curiosamente a destinatária original do texto ao lê-lo não fez nenhum comentário. rs
É isso, quem tiver paciência, pegue um lenço e leia o texto abaixo.
Contos, poemas, artigos jornalísticos, notícias, opinião, tudo que possa nos levar a pensar e quem sabe, emocionar..
sábado, 14 de fevereiro de 2009
UM DIA
Acordo ás seis e meia da manhã, da sala, ouço meu irmão digladiar-se com meus pais por mais alguma banalidade. O teto continua lá, acordei, estou viva.
Os barulhos dos carros invadem meu apartamento enquanto algum repórter diz na tv que “milhares morreram em explosão no Burundi.” Nem pisco, não imagino onde seja o Burundi, não dá mesmo para lamentar a morte de centenas ou milhares que nunca vi. Talvez se a TV mostrasse os corpos, os sobreviventes vagando num mar de lágrimas, se o locutor se mostrasse comovido, o telejornal terminasse em silêncio (como se fosse um minuto de respeito aos mortos) talvez eu até sentisse...talvez, Até a próxima notícia.
Logo que minha família me vê assomar na sala, todos me olham cada um com uma expressão diferente: Meu pai está sério como se previsse alguma catástrofe próxima, minha mãe exprime alguma dor que não é dela, mas como toda boa mãe ela sente, antes mesmo da cria sentir, e meu irmão com aquele ar de enfado, não um enfado de escarninho, este sim o mais comum, mas um incômodo que diz “ah um dia isso vai parar!.”. O fato é que paro, olho-os por algum momento, e sorrio amarelo. Todos ficam em silêncio. O café-da-manhã prossegue como nos dias anteriores, como se estivéssemos executando algum ofício sagrado, todos mudos. Confesso que também não tenho muito ânimo para falar nada, nas vezes que encontro os olhos do meu pai, eles fogem de mim, cabisbaixo, os da minha mãe parecem uma represa prestes a explodir. Mas as lágrimas são contidas. Meu irmão cantarola mudamente alguma canção que o faz fugir daquela manhã funéria.
Estou no carro. Ele desliza pelas ruas ou se arrasta pelos constantes engarrafamentos. Uma multidão de pernas, braços, rostos, vidas, sim vidas, vão desfilando perante mim. Como nos dias anteriores, tento olhar cada pessoa e adivinhar como são suas vidas, sim, os vultos agora se tornaram pessoas, não, não é para olhar os “gatinhos”. Olho para cada um e penso como serão suas vidas, seus sonhos, o que desejam e o que possuem, o que sentem, como vêem essa rumorosa e barulhenta passagem pelo sem sentido que é a existência, o que eles perderam, e o mais importante, quem eles perderam e como sobreviveram...
Meu automóvel não perde mais tempo e ao chegar na faculdade, ainda hoje, as pessoas ao olharem-me fogem-me. A maioria tenta me evitar, as outras sorriem e sorriem estupidamente, como se aquela alegria artificial pudesse abrandar uma dor tão lancinante que não ouso mensurar. Tento assistir as aulas, mas algo me tira dali. O tempo não existe, disse algum poeta? Ou seria um físico? O tempo não existe realmente. Mas se ele existe, o meu tempo agora é o passado. É como minha pele, veias, ossos, sangue, tudo estivesse tencionado, congelado no passado onde eu estava com alguém que nunca mais vou estar... Ou será que seria o contrário, melhor dizer que estou no passado justamente porque estou com ele o tempo todo?
O fato é que as aulas terminam e quando pareço não agüentar mais, acordo sobressaltada de meu enleio pelo telefone que grita. O presente. Não é ele... outra voz me fala que é mais doloroso perder alguém que está vivo do que alguém que morre. Porque a morte natural traz o consolo da fatalidade e da total impotência de mudar o que já foi. Já a morte moral criaria a situação absurda onde, duas pessoas que talvez tenham tido toda a afinidade do mundo simplesmente estejam completamente incapazes de se comunicar. Com tamanha tolice, quase desligo o telefone na cara dele, ahh se ele não fosse um bom amigo.
A noite vai chegando e cada vez fica mais penoso se concentrar na direção. Às vezes as pessoas que antes era vultos tornam-se cadáveres, sim, cadáveres. O tempo não existe e minha mente agora é toda passado, mas, quando em quando é um futuro que jamais existirá ou outro futuro, um “mais que perfeito” onde todos somos carne podre em algum charco esquecido. Ao pensar nisso, não sinto mais o terror nem o desespero de outrora apenas cansaço, às vezes, o que mais desejo é simplesmente dormir.
Mesmo parecendo um zumbi, entro em casa sorrindo. Ninguém precisa agüentar o peso do mundo que esmaga minhas costas, minha alma. Ninguém merece. Que cada um aprenda e deguste sozinho sua própria dor, no fundo essa é a lei.
Mas a noite negra vem. Mas um dia passou, e esse dia não existe mais. Sonhos nasceram, pessoas envelheceram, ganharam, perderam, mais alguma explosão matou algumas centenas em algum lugar, o barulho do carro em alta velocidade e gritos de comemoração demonstra que muita gente se divertiu nesse dia morto, dia morto. E eu sei que provavelmente muitos outros dias virão e cada vez o tempo, nosso grande inimigo, torna-se amigo para abrandar as dores presentes, e na degradação da memória, tornar suportável o que era insuportável. Contudo, nesse dia, ao pensar tudo isso lembro que ele simplesmente não existe mais, o tempo ainda não destilou seu bálsamo, ele ta aqui, dentro, nervos, ossos, sangue, alma tudo congelados no tempo, e, só me resta chorar, mas chorar bem, chorar baixinho. Mas eu sei, que vou reaprender a sorrir.
By Adriano Cabral
(Dedico a todos que perderam alguém Um Dia)
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